Perícia em evidência 29/10/2025

Você sabe como morreu Vladimir Herzog? Vem que te explico um dos casos mais emblemáticos para a história da perícia criminal brasileira

Em 2013, o atestado de óbito foi retificado a pedido da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da família Herzog. A causa da morte foi alterada para "morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, em decorrência de torturas físicas"

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

No dia 25 de outubro de 2025 a morte de Vladimir Herzog completou 50 anos. Para a maioria dos peritos oficiais em atividade, os fatos ocorridos durante a década de 70 do século passado parecem, além de distantes, desconectados de uma realidade atual. Naquela época, nosso país vivenciava uma ditadura militar e uma intensa repressão contra a militância política de esquerda. Foi um período de pouca ou nenhuma liberdade, que se manifestou também no âmbito da Perícia Criminal. Em um momento no qual o Brasil busca resgatar ao menos a dignidade manifestada pela verdade das informações, a perícia aparece como um elemento de destaque, a lembrar-nos que o passado pode nos envergonhar, mas também pode nos ensinar muito.

Nesse contexto, certamente o acontecimento que mais repercutiu na época foi o caso Vladimir Herzog, ou Vlado, nome real do jornalista de origem croata, naturalizado brasileiro, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) encontrado morto no dia 25 de outubro de 1975 nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-COD) em São Paulo, órgão que personificava o processo de repressão e censura do poder vigente.

Vamos então analisar os três documentos oficiais relacionados aos exames periciais realizados:

  • O Laudo nº 13.967, de 1975, emitido pelo Instituto de Polícia Técnica, com o título Encontro de Cadáver (Suicídio). Dia 25-10-75. Local – Cela do DOI/CODI. Req. Capitão Ubirajara do DOI/CODI. Relator: Perito Criminal Motoho Chiota. Acesso a partir de uma cópia reprográfica do Laudo de Encontro de Cadáver, de nº 13.967. O documento é dotado de uma capa, seguida de quatro folhas numeradas contendo o histórico e o RELATÓRIO, e seis folhas, cada uma com uma foto. Na folha quatro do relatório constam o local e data, a saber, São Paulo, 25 de outubro de 1975, e três assinaturas: do perito relator Motoho Chiota, do segundo perito Silvio K. Shibata e do perito Roberto Damas Salgado.

No laudo, os peritos fazem uma descrição simples do local, no item que leva esse nome (DO LOCAL) destacando-se entre os vestígios assinalados: “Esparsos no piso e em correspondência com a mencionada cadeira notavam-se vários fragmentos de papel rasgado e manuscritos a esferográfica”. O item seguinte, intitulado DO CADÁVER, traz a descrição da posição do corpo, com a redação “Junto à janela dessa cela, em suspensão incompleta e sustentado pelo pescoço, através de uma cinta de tecido verde, foi encontrado o cadáver de um homem de cútis branca, apontado como sendo o de VLADIMIR HERZOG, de 38 anos de idade, que se achava com sua língua ligeiramente procidente”. A seguir, a descrição das vestes: “Seu traje, normalmente disposto, compunha-se de um macacão verde de tecido igual ao da referida cinta e de cueca branca. Seus pés calçavam meias e sapatos de couro, ambos pretos”. O sistema de forca é descrito assim: “A referida cinta, conforme mostra a foto nº 2, anexa, estava atada na grade metálica, com um nó simples, a uma altura de 1,63 metro. A outra extremidade dessa peça formava a laçada de nó corrediço que constringia fortemente o pescoço, nó esse situado na porção posterior do lado esquerdo do mesmo.”

A única lesão do cadáver é descrita: “Removida a laçada, denotou-se, no pescoço, um sulco enegrecido, descontínuo, oblíquo e relativamente profundo, cuja largura possuía correspondência com a mencionada laçada”. O último parágrafo do item DO CADÁVER representa a própria conclusão do laudo: “Do que ficou exposto, depreende-se que o fato possuía um quadro típico de suicídio por enforcamento” – grifo nosso.

O último item, intitulado DO MANUSCRITO, traz a descrição do bilhete, com a reprodução dos dizeres. O documento foi devidamente reconstituído a partir dos segmentos de papel encontrados na cela. Os dizeres: “Eu, Vladimir Herzog, admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido aliciado por Rodolfo Konder”.

O que nos cabe comentar: o primeiro ponto a ser considerado refere-se à própria data da expedição do Laudo de Exame de Local de Encontro de Cadáver, emitido no próprio dia da morte do jornalista. Normalmente um laudo não é produzido no mesmo dia dos exames, mas somente após uma análise criteriosa, na qual o perito busca interpretar os vestígios analisados antes de emitir uma conclusão final, cujo prazo dependerá da complexidade do caso. A simplicidade do laudo também chama a atenção. Para um documento da importância que o caso exigia, em que o diagnóstico diferencial do fato, ou seja, a distinção entre suicídio e homicídio, seria obviamente o ponto nevrálgico de todas as discussões posteriores, o mero relato dos vestígios, de modo superficial, levanta suspeição. Faltam discussões, análises de vestígios e reconstituição de uma possível dinâmica.

O campo para descrever a posição do cadáver está incompleto. Não especifica as posições dos membros e outros detalhes do corpo. Não há medidas do ponto exato da amarração da cinta na janela. Faltam também medidas referentes à distância do nó até o ponto de amarração do sistema de forca e da distância do ponto de amarração até o piso, bem como até o teto. A clássica foto de Vladimir Herzog no interior da cela do DOI/CODI, em suspensão incompleta, é a única que enquadra o corpo a uma distância passível de registrar toda a cena. Nessa foto a cadeira escolar descrita esconde parcialmente o corpo. Faltam fotos completas da posição e em ângulos diversos. O instrumento constritor, neste caso, uma cinta de um macacão, não é descrito em detalhe, não há medidas de seu comprimento e de sua largura.

A descrição do sulco verificado no pescoço é também incompleta. A presença de um segundo sulco, observada em uma foto extraída do Laudo do IML, é contraditória. O segundo sulco apresenta disposição horizontalizada, compatível com sulcos verificados em eventos associados a estrangulamento homicida. Os fenômenos cadavéricos são também omitidos. Nada é dito sobre rigidez cadavérica e sobre livores hipostáticos. Não há discussão sobre o tempo de morte. A conclusão do laudo torna-se altamente questionável. Ela fala em quadro típico de suicídio por enforcamento, embora as fotos e descrições nada apresentem de típicos para esses casos. A própria posição da vítima é atípica. Embora a suspensão incompleta seja verificada em casos de enforcamento, a posição neste caso, com os membros inferiores flexionados para o lado esquerdo do corpo, é no mínimo suspeita.

  • O Laudo nº 54.620, registrado em 27 de outubro de 1975, emitido pelo Instituto Médico Legal do Estado de São Paulo – Secretaria de Segurança Pública, com o título Exame – Exame Necroscópico. Del. de Ordem Política e Social – DPOS. O acesso foi feito a partir da obra “A Sangue Quente, a morte do jornalista Vladimir Herzog”, de 1978, de Hamilton Almeida Filho. O laudo é assinado pelos médicos legistas Dr. Arildo de T. Viana e Dr. Harry Shibata (então Diretor do IML-SP).

O primeiro ponto que merece destaque é a descrição das vestes: “Calça marrom de malha com etiqueta «Jean Paton», cueca branca, blusão azul etiqueta «Correa», pulover azul de lã, sapatos e meias pretas.” Por que o corpo foi encontrado na cela de macacão e removido ao IML em trajes distintos? O corpo foi descrito apenas como de estatura pequena. Não há medida de sua altura!

No item DISCUSSÃO E CONCLUSÃO, o laudo apresenta a seguinte redação: “Globalmente o conjunto dessas lesões indica quadro médico legal clássico da asfixia mecânica por enforcamento”. Em relação ao sulco no pescoço, o laudo também omite que haja mais de um sulco.

  • O Laudo emitido pela Divisão de Criminalística Secretaria de Segurança Pública, com o título Exame de Documento. Data: 27-10-75. Requisição do Capitão Ubirajara do DOI/CODI. Relator: Antônio Armindo Camillo – Perito Criminal R.E. No 4.194/75.

O Laudo de Exame de Documento apresentava como objetivo: “verificar se é autêntica, ou não, a assinatura «V. Herzog»,” que se vê ao pé do documento questionado, face das homógrafas verdadeiras existentes às fls. do prontuário sob R.G. no 1992614, do Arquivo do DICC,…”

A conclusão do laudo: “É autêntica a assinatura «V. Herzog», que se vê ao final da «declaração» questionada.” Assinam o laudo os peritos Antonio Camillo e Carlos Petit, além do Diretor da Divisão de Criminalística.

Pronto, a farsa completa estava montada, mas não se legitimou! Em 2013, a pedido da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da família de Herzog, o atestado de óbito foi retificado. A causa da morte é alterada para “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, em decorrência de torturas físicas“.

 

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