Segurança Pública na Amazônia 13/09/2023

Uma breve história das facções no Pará e um relato da ciência em meio à expansão do crime organizado

As facções não foram vencidas. Nas ruas, sua presença e controle são sensíveis, sobretudo em áreas geograficamente relevantes ao tráfico

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Roberto Magno Reis Netto

Doutor em Geografia (com ênfase em segurança pública). Mestre em Segurança Púbica pela UFPA. Professor (IESP), Pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Geografia da Violência e do Crime (LABGEOVCRIM/UEPA) e do Instituto Científico da Amazônia (Érgane)

Clay Anderson Nunes Chagas

Doutor em Desenvolvimento Socioambiental. Mestre em Desenvolvimento Sustentável. Licenciado em Geografia. Professor e Reitor (UEPA). Pesquisador (Líder do LABGEOVCRIM/UEPA)

“O que parecia uma manhã comum irrompeu numa enxurrada de ligações e mensagens de amigos e pesquisadores. A poucas semanas da defesa de minha dissertação, o então secretário de Segurança Pública do Estado do Pará fora à maior emissora regional, ao vivo, afirmar em entrevista que não existiam facções criminosas no Pará. Era o tema de meu texto, que comprovava o contrário. Meses depois, com a troca de governo, o novo Secretário de Administração Penitenciária não só afirmou que havia, sim, facções no estado, como, além disso, deixou claro que as cadeias estavam tomadas, em larga medida. Em julho de 2019, todos assistimos, atônitos, ao massacre de Altamira” (Roberto Magno Reis Netto).

Surgidas ao final da década de 1970, as facções criminosas se desenvolveram enquanto grupos organizados que apresentam diferentes configurações materiais, variáveis conforme cada história no espaço-tempo brasileiro. Daí a discussão em defini-las enquanto coletivos ou facções.

Originárias de mecanismos associativos, elas são apontadas como um produto histórico da junção de presos comuns e políticos no precário ambiente carcerário, durante o Governo (Civil) Militar. Com o tempo, essas organizações, que reivindicavam melhores condições nas cadeias, passaram a utilizar táticas associativas como forma de inserção na economia, transformando suas atividades (especialmente o tráfico de drogas) em empreendimentos.

A associação passou a constituir um mecanismo de cooperação entre presos, que interligava suas redes interpessoais. O poder (oriundo dos recursos humanos e imateriais – a moral no mundo do crime) passou a conceber a violência como tática de expansão e de cooptação de outros presos, pelo medo ou comunhão de uma ideologia de pertencimento ao crime.

Não tardou para que essa associação interna se alastrasse, aos poucos, externamente às prisões. A associação também possibilitava a conexão de redes criminosas e uma eficiente extensão da territorialidade pelas cidades. Por certo, o processo se deu com maior veemência nos espaços pobres e fragmentados, novamente, sob um misto de ausência do estado e de inserção social às avessas.

Dentro e fora do cárcere, as facções compravam confiança por meio de mecanismos de assistência social às massas e famílias: caixas de crédito, auxílios financeiros ou alimentícios, fornecimento de transporte, contratação de advogados. Alguns desses elementos, aliás, foram identificados no contexto do estado do Pará.

A territorialização permitiu a organização de “bocas” e redução de conflitos nas áreas consolidadas, embora permanecessem as tensões com outras facções e/ou organizações paraestatais – chamadas, por muitos, de (narco)milícias. O comércio se organizou. E o controle sobre a droga (que, como o ouro, é mercadoria-dinheiro) injetava capital nas cúpulas dos grupos.

Com o dinheiro, a cooptação de agentes, sobretudo vinculados ao poder público (em especial, ao sistema penal), se tornou cada vez mais fácil. No Pará, anteriormente à intervenção de 2019, constatou-se que a incapacidade material e pessoal de combate às facções tornava o elemento medo o mais fácil de se utilizar para aquele fim.

Acrescente-se, ainda, a utilização de meios de comunicação, que facilitava o fluxo de informações entre a cadeia e o mundo externo. O sucesso desses meios (pautado no uso de celulares, outras tecnologias ou no auxílio de parentes ou profissionais– com destaque para advogados) mostrava-se proporcionalmente eficaz ao sucesso das demais estratégias referidas.

Em paralelo, as facções se valeram da consolidação de um mercado de entorpecentes intracárcere, que, para além da lucratividade apontada nos livros, servia como estratégia de controle: injetar cocaína nas cadeias ajudava a agitar as massas. Maconha, as acalmava. A venda propiciava caixa. As dívidas podiam ser pagas mediante o cumprimento de ordens das lideranças.

Quanto mais aumentava o poder do crime, maior era a segurança para adoção de sua mais grave estratégia: o enfrentamento direto ao estado. De forma leve (por meio de greves brancas) a ações violentas (como fugas, rebeliões ou ataques), as facções condicionavam o agir nas localidades e recrudesciam as mortes de agentes de segurança.

A dissertação apontava esses fatos. Ao passo, a gestão da época negava sua existência. Enquanto isso, agentes da segurança pública – verdadeiramente comprometidos – lutavam silenciosamente.

Alheio a tudo, um elemento apimentava o caldo das variáveis incidentes sobre o Pará, um novo integrar para não entregar, que acontecia a passos lentos, há pelo menos uma década: a expansão de redes do tráfico internacional de cocaína (e outras drogas) pela Amazônia, que interligava países produtores à Europa, África e Ásia. Novamente, ausência do Estado e pobreza indicariam os locais ideais para os nós dessa expansão.

Esse foi o cenário da aliança entre o Primeiro Comando da Capital – PCC e a facção regional Comando Classe A (surgida nos presídios do município de Altamira e expandida para prisões na região metropolitana de Belém (RMB) e nas cidades de Itaituba, Marabá, Tucuruí e Parauapebas). Foi o contexto da tragédia anunciada: o conflito entre o PCC e o Comando Vermelho – CV chegava ao Pará.

Os 62 mortos da tragédia de Altamira, protagonizada pelo ataque do CCA contra presos do CV, representou o maior massacre do Brasil em termos de taxa de mortos por presos. Igualmente, foi o estopim para uma intervenção penitenciária federal nas unidades do Pará, marcada pela violência e por acusações de excesso.

O sistema penitenciário voltaria, em 2020, ao controle do estado. No entanto, dividido entre disciplina e ressocialização, esse controle se mantém sob indícios de fraqueza.

E, ironicamente, um deles surgiu em paralelo às linhas deste texto, na madrugada de 1º de setembro de 2023:  a fuga de supostos faccionados da unidade de segurança máxima da RMB (CRPP III). Como se vê, as facções não foram vencidas. Nas ruas, sua presença e controle são sensíveis, sobretudo em áreas geograficamente relevantes ao tráfico, como, em 2023, se pode discutir, agora em sede de tese de doutorado.

O fenômeno continua em expansão. A ciência teima em denunciá-lo. Mas, ainda se parece estar longe de estratégias efetivas para refrear o problema. A história, neste caso, infelizmente tende a se repetir.

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