Política e Polícia

Sindicalismo de elite é golpismo – Resposta ao Coronel Pistori

O Fonte Segura cede espaço ao colunista Glauco Silva de Carvalho para a tréplica ao presidente da associação Defenda PM, o coronel Pistori, da PM de São Paulo. Na edição anterior do Fonte Segura, publicamos a réplica de Pistori ao texto do coronel Glauco, que fez parte da edição 121 do FS

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

Prezado Coronel Pistori,

Preliminarmente, gostaria de agradecer sua manifestação e contestação ao meu artigo, o que demonstra o caráter contraditório da discussão, muito próprio das democracias. E fico imensamente grato pela oportunidade que você me garante, ao me permitir, mais uma vez, a opção de demonstrar meus argumentos, o que não me foi ofertado nestes quase dois anos. Agradeço por sua gentileza.

Por oportuno, gostaria de salientar que, sendo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública uma entidade de caráter civil e absolutamente democrática, não haveria necessidade de notificação extrajudicial. Instrumentos que demonstram truculência, imposição, coação e intimidação sempre causam má impressão. Como o Fonte Segura é um espaço para difusão do conhecimento e de opiniões, bastaria um pedido para publicação. Seu espaço estaria garantido, sem sombra de dúvida. Mas nos tempos de antidemocracia, de bolsonarismo extremado, de radicalismo, perde-se, muitas vezes, o senso de que ainda há lampejos de democracia no País. Apenas a título de ilustração, tanto o jornal O Estado de São Paulo, como a Folha de São Paulo, garantem ou o direito de resposta ou a publicação de cartas ao leitor, tornando possível o contraditório.

O cerne do meu artigo é composto de dois argumentos principais: (i) você, como presidente da Defenda PM, ofendeu os pilares da Instituição, quais sejam a hierarquia e a disciplina (ao menos é isso que apregoamos, externa e internamente), ao ameaçar de expulsão da entidade um ex-Comandante Geral, o Coronel Camilo; (ii) você, ao censurar e tentar controlar a livre manifestação de um integrante da associação, agiu nos mesmos moldes que os detentores do poder na Idade Média; ao invés dos castigos físicos e do calabouço, a expulsão em prol de uma eventual “doutrina” que deve ser obrigatória a todos seus integrantes. A razão principal (a possibilidade ou não de poder conceder aumento), confesso, pouco me importou. São as atitudes e comportamentos. E a isso você não se contrapôs de forma efetiva e direta em seu artigo. Ainda que, ao que parece, assista razão ao Coronel Camilo quanto à possibilidade de concessão de aumentos.

Apesar dessa sua aparente abstração em relação ao cerne da questão, pretendo refutar suas alegações.

Antes de tudo, gostaria de agradecer o “progressista” que você atribui a mim. Confesso que até eu próprio tenho dificuldades em me enquadrar nessa categoria, mas se você o faz, fico lisonjeado. Minha cruzada contra o presidente Bolsonaro é de outra ordem. E gostaria de lhe externar. Não admito alguém, em pleno século 21, atentar contra a nossa democracia. E, para lhe falar a verdade, vou aproveitar o momento para me pronunciar.

Se não nutrir preconceitos contra homossexuais é ser progressista, então eu sou um progressista. Se não ser misógino ou não ter medo da ascensão de mulheres em cargos de direção é ser progressista, então sou progressista. Caso se entenda que encontrar meios para reverter 400 anos de escravidão ao longo dos quais os negros foram vítimas é ser progressista, então sou progressista. Se lutar por uma reforma tributária que onere os mais bem aquinhoados da sociedade, para se investir nos mais pobres e miseráveis é ser progressista, então sou progressista. Se buscar uma sociedade onde não haja a brutal desigualdade socioeconômica é ser progressista, então sou progressista. Agora, se tiver que defender regimes ditatoriais, como Cuba e Venezuela, Hugo Chávez, Nicolás Maduro e caterva, então não sou progressista. Se tiver que acusar, histórica e politicamente, apenas o nazismo, e esquecer o stalinismo, então não sou progressista. Se tiver que achar que os regimes comunistas foram os melhores do mundo, então não sou progressista. Se tiver que apoiar “mensalões” ou “mensalinhos”, “petrolões” ou corrupção de qualquer ordem, então não sou progressista. Muito simples.

Pois bem, não vou me alongar em retorquir seu artigo. Ele é grosseiro, deselegante, baixo e pouco esclarecedor. Não é próprio de coronéis. Não tenho lembrança de ter visto comportamento semelhante ao seu nos últimos 40 anos. E pior, não debateu com os dois argumentos centrais que expus linhas atrás. Silenciou a respeito, por óbvio. Na realidade, você ficou ofendido com a comparação aos déspotas da Idade Média. É estarrecedor, no mundo contemporâneo, termos censores a querer enquadrar seus associados, ou se valer de diatribes destemperadas para se opor aos seus “eventuais” adversários. Militares extremados só produzem inimigos. Infelizmente, é isso.

Pois bem, quando a Defenda foi criada, ainda que eu tenha lamentado a divisão da oficialidade, achei que poderia se fazer uma limonada de um limão azedo. Vou lhe fornecer um roteiro.

Temos que discutir as graves circunstâncias de trabalho de nosso efetivo policial. Escalas de trabalho de 12 horas impõem turnos de serviço muito severos para soldados, cabos, sargentos e tenentes. Atender ocorrências, usar pesados equipamentos de proteção, portar armamento, ficar sem alimentação por longos períodos, administrar o trabalho policial com todas as suas vicissitudes etc. não é tarefa fácil. Mas poucos se pronunciam a respeito.

Precisamos enfrentar as diferenças entre oficiais e praças, delegados e demais carreiras da Polícia Civil. Muitas disposições legais, comportamentos e atitudes que nos parecem “normais”, na realidade não o são. Na Polícia Militar, por exemplo, os dispositivos para a expulsão de oficiais são completamente diferentes dos de cabos, soldados e sargentos; na Polícia Civil, a classe dos delegados em nada se preocupa com a situação de investigadores e escrivães, deixando-os ao relento quando de negociações salariais. É isto ainda possível em um país que se diz republicano?

Temos que discutir por que, na Polícia Civil, há horários tão flexíveis e diferentes dos aplicados à Polícia Militar. Há necessidade de se verificar por que o governo do Estado não unifica os horários, por que o expediente da PC tem 6 horas e o da Polícia Militar 9 horas; por que há horários operacionais da PC que compreendem 24 horas numa semana e os da PM, 48 horas!

Temos que discutir os graves problemas de saúde que policias sofrem. Há indicadores alarmantes de doenças cardiorrespiratórias e seríssimos problemas ortopédicos. Precisamos enfrentar essas questões e entender por que elas ocorrem e quais as alternativas para minimizá-las.

Precisamos enfrentar a temática do suicídio. Enfiamos para baixo do tapete. Há um preconceito em confrontar a questão. Por quê? Porque somos “machos” e “machos” não se suicidam. Enquanto isso, há sofrimento em imensas parcelas da Instituição. Precisamos ter psiquiatras e psicólogos em cada um de nossos grandes comandos. Há normas que regem a saúde mental. Mas elas não têm sido suficientes para suportar o desafio.

Temos que enfrentar a questão da diferenciação salarial entre a Polícia Militar e a PC. Por que os salários dela são superiores aos salários de sua congênere uniformizada? Em nenhum país do mundo isso ocorre. Nenhum! Mas aqui, país de tantas desigualdades sociais e crateras econômicas, isso passa a ser normal. E praticamente nenhuma parcela da esquerda, do jornalismo ou do meio acadêmico, critica a questão. Sei, Cel Pistori, que há preconceitos de ambos os lados. Mas não é na base da truculência e do autoritarismo que resolveremos tais desafios.

Precisamos enfrentar a questão dos altos índices de execuções extrajudiciais praticadas por policiais militares. São estarrecedores as cenas e os diálogos naquela ocorrência de São José dos Campos, que tratei semanas atrás nesta coluna. As câmeras têm diminuído sensivelmente os números, mas não será suficiente. Por que isso ocorre? Mais estarrecedora foi a omissão do Ministério Público local, que desprezou o pedido de prisão preventiva da Polícia Militar e fez vistas grossas a tudo.

Precisamos enfrentar o alarmante envolvimento de policiais civis com a corrupção e o crime organizado. Não haverá solução para a criminalidade se os indicadores da PC se mantiverem tão baixos quanto sempre estiveram.

Não se trata de destruir Instituições, apenas ser crítico e buscar avanços consensuais que melhorem a condição de vida de milhares de policiais e a prestação de serviços para a sociedade. Se 80% de toda a produção policial (prisões em flagrante e apreensão de armas/entorpecentes) é feita pela Polícia Militar, como destruí-la? Nenhum empresário fecharia seu departamento de maior produção. Nenhum político consciente, e todos eles são pragmáticos, ousaria extinguir a única produtora de atividade policial e operacional. Os outros 20% são distribuídos entre a PC, as mais de 150 Guardas Municipais do Estado e as três Forças Armadas.

Precisamos discutir o sistema de segurança como um todo e preservar nossa democracia.

Prezado Cel Pistori! Eu esperava mais da Defenda. Os aspectos acima talvez possam lhe servir como pauta. Apenas para concluir: achei que você poderia estar sendo progressista também! Mas não está. O sindicalismo surgiu em fins do século 19 para defender a classe trabalhadora, submetida a severas condições de trabalho, na Europa. Agora, se você permitir que as associações de Cabos e Soldados e de Subtenentes e Sargentos ajam como você tem agido em relação aos respectivos comandos, então você estará sendo republicano, sério e justo. Espero que isso não ocorra. Será o caos para a segurança pública de nossa sociedade.

Chega de bravatas. Sindicalismo de cúpula não é defesa de segmentos desprotegidos e frágeis! É golpismo de quem possui o poder. É forma de externar recalques e ressentimentos. No cargo que você está, são necessárias parcimônia, responsabilidade e mansidão.

Em tempo 1. A Defenda tem colocado o comando da Instituição em condições no mínimo críticas perante o governo. Não diga, ao assumir a presidência da Fermesp, que há necessidade de a Instituição se afastar “da subserviência”. Quando assim se pronuncia, humilha o Coronel Alencar, Comandante Geral da PMESP, pessoa digna e correta. No militarismo clássico, é ele quem se pronuncia em nome da Instituição.

Em tempo 2. Quando for fazer convescotes com candidatos, faça com todos, não apenas com o candidato do bolsonarismo. A reunião ocorrida, recentemente, deixa o comando em “saia justa” perante o governo, que, segundo a Constituição, é o comandante-em-chefe da organização. Dê, pelo menos, aparência de isenção.

Em tempo 3. Evite colocar placas ofensivas quando o General João Camilo Pires de Campos for fazer entrega de medalhas. Ele é um general “do” e “de” Exército. Não explicite o caráter sindicalista da Defenda. Precisamos, acima de tudo, ter postura, honradez e dignidade.

Em tempo 4. Ao que fui informado, as decisões judiciais e pareceres de órgãos técnicos do Estado dão sustentação ao afirmado pelo Coronel Camilo (vide ADIs 6450 e 6525 e anexos). Mas, confesso, este não é o mote principal da questão por mim levantada.

Parecer TCE (1)

Parecer PGE (3)

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