Política e Polícia

A Associação Defenda e a Inquisição

A crise de identidade das polícias no Brasil

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

Prezado Cel Pistori,

Espero encontrá-lo bem! Trabalhamos no Comando Geral há cerca de 15 anos. Tenho respeito e apreço por sua pessoa e seu profissionalismo. Não falamos pessoalmente há muito, mas a consideração permanece.

Confesso que hoje eu pretendia falar acerca das medidas alvissareiras tomadas pelo atual Comando Geral. Ou sobre o tal “direito à manifestação” do policial militar. Ou, ainda, sobre Operação Delegada, pedido da direção deste Fonte Segura.

Mas fui tomado, com surpresa, por uma mensagem, que está sendo amplamente divulgada, cuja autoria lhe pertence, já que você é o presidente da Defenda, entidade criada há poucos anos cujo objetivo, como a própria nomenclatura o demonstra, é “defender” a Polícia Militar.

Pois bem, não quero ou não gostaria que você tomasse essa missiva no campo pessoal. Quero apenas fazer uma análise política e um pouco sociológica acerca do que você escreveu.

Talvez você não saiba, mas anos atrás, talvez uns seis anos, um grupo de oficiais, quase todos majores, me procurou e ofereceu o cargo de presidente de uma nova associação que estava em formatação dentro da Instituição, cujo mote era desenvolver a defesa mais acentuada dos interesses corporativos. Pois bem, eu era candidato, junto com o falecido e ex-presidente da Associação dos Oficiais da Polícia Militar de São Paulo, Cel Chiari, ao cargo de vice-presidente da AOPM.

Confesso que, para mim, toda divisão significa enfraquecimento. Naquele momento, se não me engano 2016, procurei o Cel Petinatto, então presidente da AOPM em exercício e o articulador de sua sucessão, e pedi autorização para que meu cargo fosse negociado com aquele jovem grupo de oficiais. E assim foi feito. Eles poderiam ocupar a vice-presidência e não haveria um racha dentro da Associação. Mas a proposta de negociação não prosperou. Minha outra preocupação, à época, seria o grau de radicalismo que essa nova entidade poderia assumir, em algum momento. Jogo jogado, bola para frente.

Haveria muito o que discutir acerca dos motivos que levam a uma insatisfação tão grande no seio da oficialidade. Desde as mais simplistas — anseios corporativos por melhorias para a categoria — até as mais complexas, como a perda dos pressupostos militares, que caracterizariam historicamente a Instituição, já que ela, numa democracia federativa, não teria mais a defesa do Estado como seu mote, gerando frustração e desencanto.

O fato é que a Defenda surgiu sem que houvesse uma geração de transição, que soubesse e tivesse vivido os “velhos tempos”, mas que preparasse a mudança para as “perspectivas futuras”. Também não sei se teríamos pessoas com habilidades para tal desafio. Na realidade, houve uma ruptura no sentido literal. De outro lado, sem sombra de dúvida, a AOPM também não representava mais a jovem oficialidade, uma vez que a Associação vive dos “velhos tempos”, que não mais voltarão, mas que talvez Bolsonaro tão bem encarne.

Há pouco tempo, o Cel José Vicente, preparado oficial da PMESP, ao ser questionado, respondeu que a AOPM não mais representava a oficialidade da Polícia Militar. Achei um tanto quanto grosseiro e rude da parte dele, mas o Cel José Vicente, inteligente que é, tem inteira razão. A oficialidade é hoje bipartida.

Tudo isto, prezado Cel Pistori, para dizer duas coisas.

Em primeiro lugar, como o bolsonarismo tomou conta da oficialidade. Na realidade, você representa ampla parcela da oficialidade da ativa. Se proferiu as palavras que proferiu, é porque tem legitimidade no âmbito de seus integrantes. Isso demonstra como minhas análises têm procedência. “A DEFENDA PM vem a público comunicar a seus associados que REPUDIA o posicionamento de seu associado, Álvaro Batista Camilo, Cel PM e Secretário Executivo da PM junto à SSP. Em recente entrevista, o referido oficial transferiu ao Presidente da República a responsabilidade pela evidente quebra de promessa de campanha e palavra empenhada do Governador João Doria, referente às polícias de SP terem o 2º melhor salário do Brasil até o final do seu mandato. A Associação lamenta que o oficial, de grande conhecimento técnico e jurídico e que já tenha ocupado o Comando Geral da PMESP, tenha cometido tal erro de análise jurídica, que não condiz com a realidade, perante a população e a tropa […].”

Interessante como nunca vi posicionamento da Defenda criticando as bobagens proferidas pelo presidente da República em relação à “gripezinha”, à democracia do País, à separação dos poderes. No fundo, você veio a público chamar à atenção de um outro coronel, que fora Comandante Geral da Instituição. Confesso que, até para mim, que tenho visão extremamente crítica, soa de certa forma estranha a maneira como você se referiu a ele. Ao fundo e ao cabo, é a quebra da hierarquia e da disciplina, fundamentos que, ao que me consta, a Instituição alega ser seus valores centrais.

Em segundo lugar, o caráter autoritário de sua manifestação. “Com essas declarações do Sr. Cel Camilo, estamos avaliando medidas relativas à sua permanência no quadro associativo pleno”.

Aí está a cereja do bolo! Voltamos à Idade Média, da inquisitio. Ou seja, a “doutrina” tem que prevalecer. Cada dia tenho mais convicção de que, no Brasil, o “bolsonarismo” é muito anterior a Bolsonaro.

Não tenho procuração para defender o Cel Camilo. Ele nem sabe que, neste momento, estou escrevendo e publicando este artigo. Mas defendo o direito de ele se manifestar pública e politicamente, pois está na reserva e cumpriu com suas responsabilidades nos seus quase 40 anos de serviço. Nem digo que ele esteja correto, pois parece não lhe assistir plena assertibilidade. Assim como defendo seu direito de se posicionar contra o governo Doria.

Ao fim e ao cabo, não aceitamos o diferente. Temos dificuldade com isso. Muita dificuldade.

Nesse sentido, talvez eu tenha empatia com o Coronel Camilo. Eu renunciei à função do Vice-presidente da AOPM por ser um anti-bolsonarista radical. Achei o mais consentâneo com minhas posições éticas e políticas. Se a oficialidade é majoritariamente bolsonarista, que tenha uma representação bolsonarista. Mas ninguém me ameaçou de expulsão da associação. É uma diferença do céu para a terra.

Seguramente, o sistema de segurança pública do Brasil vai se mostrando esclerosado e com uma profunda crise de identidade. Delegados querem ser “carreira jurídica”, seja lá o que isso queira significar. A Polícia Militar quer se manter militar, mas já não sabe mais o que é o militarismo. Seu posicionamento é uma afronta ao militarismo clássico.

Mas vejo um lado bom em toda essa problemática. Talvez a Defenda acelere um processo de pôr fim a um sistema que, a cada dia, se mostra mais defasado e distante de suas origens, no século 19.

Fraternalmente,

Glauco Silva de Carvalho

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