Política e Polícia

Carta aos Jovens Policiais

Depois de 35 anos na corporação, coronel da reserva da PMESP dá seis razões para que jovens oficiais, sargentos e soldados permaneçam cumprindo a lei: "Somos nós que temos o mais belo dos papeis no mundo contemporâneo: ajudamos um povo a se tornar civilizado. Sim, somos agentes da civilização e não da barbárie."

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

Prezado 2º Tenente, Aspirante a Oficial, Soldado

Com minhas escusas, pela petulância em me dirigir ao(a) senhor(a), sem conhecê-lo(a) bem, ou talvez absolutamente nada. Mas gostaria de lhe dirigir algumas singelas e humildes palavras, de quem ficou na Instituição Polícia Militar por 35 anos, já está na reserva há seis, mas, ainda que de longe, acompanha fatos que, se não danosos à Instituição, são muito prejudiciais à vida pessoal de policiais militares e, por que não dizer, de policiais civis também.

No sábado passado, fiquei por aproximadamente cinco horas na sede da TV Globo em São Paulo. Dois brilhantes jornalistas conseguiram, de fonte ignorada, um relatório da Corregedoria da Polícia Militar e as imagens gravadas por equipamento eletrônico de vídeo e áudio que os policiais militares carregam acoplado em seus fardamentos. Era um incidente de execução extrajudicial de um assaltante em São José dos Campos.

Confesso que assistir aos vídeos de todos os integrantes do BAEP de São José dos Campos me deixou estarrecido. Não apenas porque você vê um mesmo fato por diferentes ângulos, o que não deixa de ser muito, mas muito interessante, mas pela desenvoltura dos policiais militares que mataram um assaltante e forjaram a cena do crime. Em dado momento, fiquei a me questionar o motivo de eles tomarem tal atitude, se havia câmeras em seus peitos filmando e gravando tudo. Mas vamos em frente.

Antes que o senhor ou a senhora desistam de ler esta carta, quero lhes afiançar: não defendo a impunidade. Defendo apenas o direito de aquelas pessoas serem presas, julgadas e condenadas, uma vez que a quantidade de provas era muito robusta.

Se você que está saindo de uma academia de formação e tem dúvidas sobre seu papel, de protetor das pessoas, de cumpridor da lei, de agente do Estado, de garantidor da paz pública, vou lhe dar seis razões para você permanecer no cumprimento estrito da lei. Vamos tomar como exemplo essa ocorrência, que servirá de modelo para todas as outras.

Em primeiro lugar, você, em dado momento, vai perder sua liberdade. Sim, é isso mesmo. Ainda que a promotoria da cidade e o Poder Judiciário local tenham aberto mão da prisão preventiva — primeira vez que vejo tal atitude em 40 anos —, em alguma fase do processo, esses integrantes todos serão condenados a algo entre 25 e 30 anos, no mínimo. Por terem bons antecedentes, ficarão reclusos no Presídio Militar Romão Gomes por um sexto (1/6) da pena, algo ao redor de 5 anos, ininterruptamente. É um tempo em que você não poderá viajar, ver seus entes queridos diária ou semanalmente, ir ao cinema, frequentar um restaurante, ficar sem fazer nada em lugar que bem entender. A reclusão não é fácil. Priva as pessoas de um de seus direitos mais importantes: a liberdade de ir e vir.

Mas não é só.

Em segundo lugar, você não sabe se encontrará sua família ao sair do presídio. Sim, é isso mesmo. Muitos reclusos, incluindo policiais militares, perdem suas esposas ao permanecerem presos. São muitas as hipóteses. A esposa não admite o policial marido ter se envolvido, seja com corrupção, seja com execução de criminosos. Para muitas delas, sair, no futuro, com alguém ex-recluso é motivo de vergonha. Por vezes, a mãe não quer que seus filhos sejam “influenciados” por um pai que está preso. Na cabeça delas, filhos pequenos não teriam o discernimento de entender por que o pai estaria preso e seria “má influência” para os filhos, daí terem que permanecer distantes. E, por fim, mas não menos importante, algumas não suportam a solidão por tantos anos e acabam se envolvendo com outras pessoas, trazendo mais dor, frustação, angústia e depressão àquele que está preso.

Em terceiro lugar, você perde uma profissão honrada, séria e digna. A vida não está fácil para ninguém. Vivemos de crise crônica deste 2014, sem trégua. Talvez a mais longa crise dos últimos cem anos. Há inflação, perda de trabalho, baixo crescimento, aumento da miserabilidade das pessoas, altíssimas taxas de desemprego e por aí vai. Podemos pensar: “ah, mas o serviço público não é nenhuma beldade…”. Verdade, mas posso dizer de cátedra: se você for correto, programado e planejado, terá, sem sombra de dúvida, uma vida digna e honrada. Seja o oficial ou o praça, ao final da carreira. Não é fácil ingressar hoje em dia na Polícia Militar. Em alguns concursos, temos mais de 100 candidatos por vaga. Se sua pena for superior a dois anos, perderá automaticamente o cargo público. Se inferior, a Instituição avaliará sua permanência ou não. Preserve seu emprego; não o troque por uma aventura.

Em quarto lugar, ao sair do presídio, você não encontrará tão facilmente um outro serviço. Ainda há muito preconceito no Brasil — e no mundo todo — em relação a egressos. A maior parte dos policiais militares que sai de um presídio ainda vai fazer pequenos bicos de segurança privada — cada vez mais escassos — ou arranjar trabalhos esporádicos de prestação de serviços. A vida dessas pessoas não é fácil.

Em quinto lugar, com o passar do tempo, a maior parte de seus companheiros de pelotão vai seguir a vida. Eles te darão suporte nos primeiros anos de presídio, vão visitá-lo, levarão seus familiares para vê-lo, entregarão um alimento de melhor qualidade, suprirão lacunas de bens materiais que o presídio não oferece. Mas, após três ou quatro anos, cada um terá sua família, filhos para cuidar, emprego extra para suprir as carências familiares, exigências de esposas, encargos profissionais e… novos amigos. E você continuará preso.

Em sexto e último lugar, a mentira desqualifica-nos enquanto homens e mulheres, profissionais que somos, e nos desacreditam, perante a sociedade e perante juízes e promotores, que, um dia, irão nos julgar. Se prezamos tanto pela honra, um valor que provém da Idade Média, montar ocorrências, fraudar normas processuais, alterar local de crime, induzir testemunhas à mentira e ao erro, forjar circunstâncias que não existiram são, todas elas, aspectos que, em última análise, se constituem na mentira. Se nossa honradez não é suficiente para lhes convencer, muitos juízes e promotores, nos dias atuais, dada a quantidade de ocorrências forjadas, desacreditam em nossas palavras. Tudo isso vai, seguramente, se voltar contra nós. Se nosso papel é induzir pessoas ao cumprimento da lei, nós temos que ser os primeiros a fazê-lo.

Com tudo isto, quero dizer a você, jovem oficial ou praça, aspirante, tenente ou soldado, cabo e sargento: não entre em aventuras. Não extrapole os limites da lei, ainda que você saiba que a lei não seja respeitada em países como o Brasil. Não queira fazer justiça com as próprias mãos, ainda que você considere que a injustiça prevaleça. Se você acredita em Deus, não queira ser um deus todo poderoso, porque isso poderá lhe custar muito caro.

Nosso papel na sociedade contemporânea é muito importante. Somos nós que temos a incumbência de reverter o quadro acima: estimular as pessoas a cumprirem a lei e, do contrário, encaminhá-las para o Poder Judiciário. Somos nós que temos que coligir provas e prender infratores da lei, para que um juiz possa condená-los. Somos nós que temos o mais belo dos papeis no mundo contemporâneo: ajudamos um povo a se tornar civilizado. Sim, somos agentes da civilização e não da barbárie.

Desejo a você, meu caro policial, ser feliz em sua carreira… e a poder, um dia, curtir o resultado de tanto esforço com seus netos e netas.

Obs. No  próximo artigo me dirigirei à alta administração da Polícia Militar.

Fraternalmente,

Glauco Silva de Carvalho

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