Múltiplas Vozes 16/11/2023

Siga o dinheiro!

A instalação dessa GLO e o uso da Força Nacional são ações equivocadas que revelam a falta de foco ao problema da segurança pública no Rio de Janeiro e que só pode ser explicada pela necessidade de uma resposta midiática. Precisamos pensar em que medida podem, de fato, asfixiar financeiramente as facções criminosas de base prisional e, em particular, as milícias

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Daniel Cerqueira

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Renato Sérgio de Lima

Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Visando estrangular financeiramente o crime organizado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública divulgou um documento intitulado “Operações Integradas de Combate ao Crime Organizado”, com 10 ações para responder à crise mais recente no Rio de Janeiro, ocasionada pelo incêndio a um trem e 35 ônibus por um grupo miliciano.

A fim de tentarmos entender as chances de êxito da iniciativa precisamos pensar em que medida tais ações podem, de fato, asfixiar financeiramente as facções criminosas de base prisional e, em particular, as milícias. Para isso, precisamos seguir o caminho do dinheiro.

A milícia é baseada em um modelo de negócio sustentado por um tripé: 1) domínio territorial armado; 2) uso da violência para a exploração econômica do território; e 3) monopólio político local. Explora-se desde transporte público irregular, ligações clandestinas de internet e tv a cabo (gatonet), grilagem de terras, construção irregular de imóveis, a qualquer atividade legal exercida por empresários locais, que são obrigados a pagar taxas mensais para os criminosos. Os eleitores são coagidos a votar apenas nos nomes indicados pelos milicianos. Campanhas eleitorais de outros candidatos são proibidas no território. A relação entre a milícia, a banda podre da polícia e a banda podre da política garante a sustentabilidade do negócio.

Portanto, um primeiro ponto fundamental a se ressaltar é que não há como combater as facções criminosas, sejam de narcotraficantes, seja de milicianos, se esses grupos garantem o funcionamento de suas atividades e seu lucro com base na “apólice de seguro” obtida muitas vezes com a cooptação de policiais corruptos e que conta com a cobertura de setores que dominam o cenário político local. A questão não é só corromper policiais para que eles atuem como prepostos das milícias, mas também para que eles se omitam ou façam vistas grossas ao controle armado dos territórios e da economia das cidades. Desta forma, não há como propor medidas efetivas para a segurança pública do Rio de Janeiro sem a pré-condição de se fazer uma reforma radical das polícias fluminenses – com o expurgo dos maus policiais – e sem identificar e prender os elos do crime organizado no campo político.

Trata-se de um trabalho extremamente desafiador que demandaria uma atuação integrada de várias organizações federais, para além da Polícia Federal, como o Ministério Público Federal, Receita Federal, COAF e Abin, entre outras. A estratégia dessa força-tarefa seria orientada pelo trabalho de inteligência a partir do mapeamento de como os vértices das redes criminais desses três grupos se relacionam.

Nesse sentido, entre as 10 ações propostas, corretamente o documento assinala que “a Polícia Federal ampliará as ações de inteligência”. No entanto, o conjunto das ações revela que o Governo Federal tateia na escuridão sem uma estratégia definida e sem saber para qual direção seguir. Isso não significa, como leituras interessadas politicamente por vezes apontam, defender o sigilo operacional como antagônico à premissa constitucional da transparência da ação política. Ações policiais precisam acontecer dentro de um marco político público e escrutinável. O sigilo, quando técnica ou juridicamente justificável, é legítimo para a dimensão tática e operacional.

Porém, por questão de espaço, vamos nos ater ao maior equívoco contido no supramencionado documento, que versa sobre a decretação de uma GLO, em que militares das forças armadas atuariam em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tal ação, de fato, revela a falta de profundidade na análise do problema de segurança pública no Rio de Janeiro, cujo maior desafio, como falamos, se relaciona à coalizão entre milícias e bandas podres da polícia e da política.

Ainda que, por uma ação mágica, a GLO tivesse um sucesso absoluto no sentido de, momentaneamente, impedir totalmente a entrada de drogas e de armas no estado, ainda assim, isso nem de longe arranharia e muito menos asfixiaria a milícia carioca. Isso porque, como falamos, as principais atividades lucrativas das milícias envolvem a exploração econômica do território dominado. Certamente, no curto prazo, o custo com aquisição de armas no mercado ilícito poderia subir. Porém, como esse mercado está bem suprido, com a ajuda da política armamentista negacionista do Governo Bolsonaro, que facilitou o acesso a armas e fez diminuir o custo das mesmas, tal efeito teria um impacto nulo ou residual na lucratividade das milícias cariocas.

Por outro lado, além do “plano” estabelecer um remédio equivocado para o problema, a instalação de uma GLO e mobilização de militares das forças armadas nos portos e aeroportos é uma medida ingênua e anódina para a ideia de reprimir armas e drogas, como didaticamente explicaram Cleber Lopes e Gabriel Patriarca, em artigo do Fonte Segura. Portos e aeroportos são estruturas complexas, onde o sistema de segurança coabita com mais de uma dezena de organizações. Além da própria Polícia Federal e alfândega, existe a empresa que opera a estrutura, várias empresas terceirizadas, agência regulatória e, no limiar, as próprias policiais estaduais.

Para o êxito na contenção a descaminho e contrabando, o fundamental é rever a estrutura de governança e o aprimoramento da coordenação desses atores. A simples presença de militares nesse contexto não agrega nada, porque eles não foram preparados para esse propósito. Ou seja, a GLO e o emprego de militares em portos e aeroportos, além de atirarem no alvo errado, fazem-no com o instrumento equivocado. Isso para não dizer que, se o foco é o Rio de Janeiro, os estudos disponíveis mostram que o Comando Vermelho tem nas rotas do narcotráfico e de armas que passam pela Amazônia sua principal estrutura logística. Entretanto, ações sobre a região ficaram para ser anunciadas quando de um futuro plano.

A instalação dessa GLO e o uso da Força Nacional são ações equivocadas que revelam a falta de foco ao problema da segurança pública no Rio de Janeiro e que só pode ser explicada pela necessidade de uma resposta midiática. Mas a segurança pública e a polícia que funciona são aquelas que não resultam em espetáculos televisivos, mas trabalham silenciosamente identificado, reunindo provas e prendendo os principais criminosos que tantos danos causam à sociedade.

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