Múltiplas Vozes 08/11/2023

Encenando a segurança: o caso da GLO

Recursos temporários não resolverão problemas enfrentados há tempos pelos auditores da Receita Federal, agentes da Polícia Federal, guardas portuários e outros profissionais que combatem o crime organizado no dia a dia

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Cleber Lopes

Professor de ciência política da Universidade Estadual de Londrina

Gabriel Patriarca

Doutorando em Sociologia na Universidade de São Paulo

No dia 1° de novembro de 2023, em resposta a mais uma crise na segurança pública do Rio de Janeiro, a Presidência da República assinou um novo decreto para Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A GLO se tornou a resposta-padrão do governo federal às crises agudas e sucessivas na área de segurança e vem contribuindo para normalizar a participação das Forças Armadas na vida pública brasileira. A originalidade da resposta do momento está no emprego da Aeronáutica e da Marinha no patrulhamento de aeroportos e portos dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro.

É positivo que o governo federal tenha considerado como espaço prioritário para ação os hubs logísticos usados pelo crime organizado para importar armas e exportar drogas, com destaque para os portos. Grandes apreensões de armas ocorreram no Aeroporto do Galeão e de cocaína no Porto do Rio de Janeiro nos últimos anos, com investigações recentes apontando para o maior protagonismo do Comando Vermelho (CV) na exportação da droga. Igualmente, o Porto de Santos é o locus do tráfico internacional do Primeiro Comando da Capital (PCC) e há anos lidera o ranking de apreensões de cocaína no país, além de ser um ponto de entrada de armas e munições, conforme descoberto pela Operação Outlet. Neste cenário, é certo que a desejada asfixia financeira das principais organizações criminosas do país passa por uma atuação eficiente do poder público nos portos brasileiros. Entretanto, a LGO anunciada não garante essa eficiência.

A segurança portuária é promovida por uma rede complexa composta por dezenas de organizações públicas e privadas que precisam coordenar esforços para detectar e reprimir ilícitos. A Marinha é parte dessa rede interorganizacional, atuando no policiamento dos acessos marítimos aos portos. A novidade que a GLO traz é ampliar o poder de fiscalização da Marinha. Antes mesmo que a Marinha suspeitasse que algo estivesse escondido em uma embarcação, apenas a PF poderia realizar a busca e demais atos de polícia associados. Agora, a Marinha pode atuar nesse tipo de busca porque a LGO atribui a ela poder de polícia. Mas a questão central não é quem pode realizar buscas por produtos ilícitos e sim onde realizar tais buscas em um espaço de fluxos imensos e praticamente ininterruptos de pessoas, veículos, navios e, sobretudo, cargas.

A maior parte da cocaína que flui pelos portos, por exemplo, entra por terra escondida em contêineres ou dentro de caminhões. Apreensões decorrem ou de investigações já em curso realizadas pelas forças policiais ou, como é mais comum, do trabalho das alfândegas da Receita Federal do Brasil (RFB) – não incluída no decreto de GLO e mencionada apenas brevemente na cerimônia de anúncio. São as alfândegas que realizam as análises de risco para selecionar contêineres a serem inspecionados, checam as imagens dos escâneres que lhes são disponibilizadas pelas instalações portuárias e impõem várias outras medidas que essas instalações devem implementar como parte das normas de alfandegamento da RFB. Em um dos maiores terminais de contêineres do porto de Santos, 58% das apreensões entre 2014 e 2021 ocorreram por meio do escaneamento de contêineres. Ainda assim, há anos as alfândegas sofrem com efetivos insuficientes, falta de concursos públicos para a reposição de servidores e reajustes salariais. Problemas similares são enfrentados pela própria PF que, além de ações ostensivas nos Núcleos Especiais de Polícia Marítima (NEPOM), é responsável pela formulação e fiscalização da implementação de medidas de segurança pelas instalações portuárias no âmbito da Comissão Nacional de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis (CONPORTOS) e respectivas comissões estaduais (CESPORTOS).

O fato é que a maior eficiência da segurança portuária depende principalmente de maior investimento nas organizações e atividades de inteligência que compõem a rede que governa a segurança desses espaços. Recursos temporários não resolverão problemas enfrentados há tempos pelos auditores da RFB, agentes da PF, guardas portuários e outros profissionais que combatem o crime organizado no dia a dia. A apresentação de um plano de modernização tecnológica e de um Plano Nacional de Segurança Portuária e Aeroportuária, prometido na cerimônia de anúncio da GLO, pode trazer soluções para o que interessa. Entretanto, essa é apenas uma possibilidade jogada para o futuro. Para o presente restou mais um “teatro de segurança”, encenado para dizer que algo está sendo feito pelo governo federal para lidar com a crise da vez.

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