Múltiplas Vozes

Repassar, redistribuir e equalizar recursos financeiros: o que o Fundo Penitenciário Nacional (não) anda fazendo para a articulação federativa

O Fundo Nacional padece da falta de participação social e de articulação federativa, o que se soma à ausência de diretrizes programáticas nacionais induzidas pelo órgão federal nacional

Compartilhe

Walkiria Zambrzycki Dutra

Residente de Pós-Doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, membro do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG), membro do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (labGEPEN/UnB) e organizadora do livro “A Sociedade Civil nas Políticas Penais: Estratégias de Incidência” (Casa do Direito, 2021)

“Repassar, redistribuir, equalizar” recursos financeiros. Esses três verbos sumarizam, grosso modo, as principais atividades e funções exercidas pelo governo federal no financiamento junto aos demais entes federados para a provisão dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988. O repasse de recursos financeiros funciona como forma de incentivo financeiro aos governos subnacionais por meio de estratégias de coordenação federativa. As ideias da redistribuição e equalização são normativas. Trata-se de desconcentrar os recursos financeiros e garantir harmonia entre as unidades regionais, já que o arranjo federativo é caracterizado por fortes desigualdades entre as regiões. Nesse contexto, busca-se garantir mecanismos e estratégias que mitiguem a provisão de políticas universais de atendimento aos cidadãos previstas constitucionalmente.

Ao longo das últimas três décadas, observamos diversas tentativas, nas mais diversas áreas de políticas sociais, de estratégias de coordenação federativa. O caso mais bem sucedido está no Sistema Único de Saúde (SUS), no qual se observa, grosso modo: um Conselho Temático (de caráter participativo e muitas vezes paritário entre governo e sociedade civil), um Plano Temático (de planejamento e gestão dos programas e ações), e um Fundo Temático (específico para a execução das diretrizes do plano, e habilitado para a modalidade de repasse fundo a fundo). Os três instrumentos caminham de forma integrada, de forma a garantir o controle social, o planejamento governamental e a autonomia federativa atrelada ao cumprimento das diretrizes legais e orçamentárias na modalidade “fundo a fundo”.

A partir desse quadro, é importante destacar o uso do termo “tentativas”. Afinal, o arranjo federativo brasileiro atribui autonomia ao governo federal, aos 27 governos estaduais e aos 5.560 municípios. Cada qual possui fonte de arrecadação própria, estruturas administrativas singulares, e competências legais a serem cumpridas para a garantia dos direitos sociais básicos. O empenho dos três entes federados para cumprir com suas obrigações constitucionais demanda cooperação e coordenação em arranjos que precisam ser negociados e barganhados em todas as etapas de formulação e implementação dos programas e ações que se pretende realizar.

Ao olharmos para o sistema prisional nos deparamos com um primeiro percalço: a escolha do governo federal em se ausentar do papel de promover a coordenação federativa. Não houve tentativas de construção de um “Sistema Nacional de Políticas Penais” ou Política Penitenciária aos moldes do modelo CPF (conselho, plano e fundo) em nível nacional, assim como a proposição de diretrizes nacionais para os serviços penais foi tímida e pontual por parte do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).

Ao nos debruçarmos sobre o Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), criado em 1994, vemos que seu escopo de atuação é amplo, qual seja: aplicar os recursos arrecadados na modernização e melhoramento dos sistemas prisionais. Mas esse Fundo Nacional tem muitas peculiaridades. A primeira delas reside no fato de ser o único fundo cujo ordenador de despesas é o Diretor-Geral do órgão federal, de forma que não há escrutínio popular de nenhum outro órgão ou instituição na definição das diretrizes de gasto.

A segunda peculiaridade reside no fato de ser um instrumento de gestão financeira que previa a aplicação dos recursos por meio de transferências voluntárias, o que significava dizer que o repasse dos recursos que ocorria não era uma obrigatoriedade constitucional. Esse foi um dos fatores que levou à denúncia, em 2015, dos desvios das verbas não depositadas no FUNPEN. Ajuizada no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 347 foi julgada parcialmente procedente, o que levou à determinação da liberação dos valores depositados no Fundo aos entes federados.

Contrariando expectativas, a ADPF não atuou como um catalizador para movimentar o DEPEN em prol de ações assertivas de repasse, redistribuição e equalização. No ano de 2016, as diretrizes do DEPEN para liberação dos recursos se deram de forma abrupta e descoordenada, pois não levaram em conta critérios técnicos. À época, o valor de R$ 44.784.444,44 foi dividido homogeneamente às unidades da federação sem a realização de nenhum diagnóstico que considerasse, por exemplo, a população prisional de cada estado, a necessidade de implementação dos demais serviços penais, e os critérios esperados para a criação de vagas em estabelecimentos prisionais.

No ano de 2017, a Lei Federal no 13.500 criou a modalidade “fundo a fundo”, passando a vigorar a transferência obrigatória e periódica dos recursos do FUNPEN aos fundos estaduais, distrital e municipal. Segundo dados do DEPEN, entre os anos de 2016 a 2018, foram repassados às Unidades da Federação quase dois bilhões de reais. Desse total, o valor executado pelos entes subnacionais representou 36%. Para além da retórica do governo federal de incapacidade executória dos governos estaduais, não há estudos indicando os motivos para tal fato.

Estamos, portanto, diante de um aspecto perverso que merece reflexão: a execução orçamentária dos fundos nacionais pode não ser indicador para a realização de políticas públicas. O que vemos na pauta prisional é a existência de um Fundo Nacional que padece da falta de participação social e articulação federativa, somado à ausência de diretrizes programáticas nacionais induzidas pelo órgão federal nacional. O conteúdo dessa política pública é um exemplo típico de “jogo de empurra” entre o que se tem de problemas e o que não se quer fazer para resolvê-los.

 

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES