Profissão Polícia 31/01/2024

Reinícios de ciclos violentos profissionais: a necessidade de debater o que é segurança pública e o trabalho policial

O convívio com a morte, real ou imaginária, faz parte da profissão dos agentes de segurança pública no Brasil. Independentemente de quem seja a morte, ela infelizmente “faz parte”

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Gilvan Gomes da Silva

1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB)

O dia 14 de janeiro de 2024 trouxe mais uma fatalidade que é resultante de vários fatores que se interligam de forma complexa. O fato envolvendo o 2º Sargento e o Soldado do Quadro de Praças Combatentes da PMDF soma-se a tantos outros envolvendo morte de profissionais de segurança pública que recebem atenção no dia e, talvez, na semana do fato. Todavia, as soluções são paliativas, superficiais, porque os fatores que conduzem para tal situação se interseccionam de forma complexa, e não há espaço para debates visando à resolução.

Peço inicialmente a gentileza de lerem a rica contribuição de Juliana Lemes e Juliana Martins ao Fonte Segura, pois apresentam diversos dados e análises que fomentam reflexões importantes para formulação de políticas de intervenção, desde a formação policial. Assim, uso esse espaço hoje apenas para um exercício de autorreflexão, numa tentativa de contribuir com as outras pessoas que analisam o evento e tentar somar como mais um dado de informação. Coloco-me nessa posição pela falta de esperança e por estar muito próximo dos fatos. Eu e o 2º Sargento frequentamos o mesmo Curso de Formação de Soldado, em 1999. Talvez tivéssemos as mesmas angústias naquela época, de jovem negro de periferia do Distrito Federal. Talvez os mesmos sonhos de vida previsível e estabilidade financeira e tudo que decorreria na virada do milênio. Mas já de início, em dezembro de 1999, nosso curso ficou marcado pelo assassinato de outro colega de curso em sua residência, também na periferia próxima, na cidade de Águas Lindas. Nosso curso agora tinha nome, Dos Anjos. Nome de Guerra do Aluno a Soldado assassinado por ser policial militar.

O convívio com a morte, real ou imaginária, faz parte da profissão dos agentes de segurança pública no Brasil. Desde o início da carreira profissional. Seja das vítimas atendidas, dos agentes de segurança, dos agentes criminosos. Independentemente de quem seja a morte, ela infelizmente “faz parte”. Lembro que na primeira instrução de tiro, ao segurar o revólver para sete munições, peguei-me reflexivo. Aquilo que me entregaram poderia tirar a vida de sete pessoas. Olhei para os colegas do pelotão. A maioria estava eufórica, alguns tinham receios. Todos jovens. Éramos muito jovens com o revólver. No Brasil, a arma é tida como o principal instrumento de trabalho. Tal qual a caneta para outras profissões. Mas o processo psicológico para naturalizar a morte e o instrumento de trabalho é acompanhado? Qual o custo para os profissionais?

Lembro que há pouco conversava com um 3º Sargento, de outra “geração profissional”. Estou 1º Sargento. Ele reagiu a uma tentativa de assalto no dia anterior e o assaltante morreu. O policial estava iniciando o serviço normalmente. Perguntei-lhe se alguém da instituição tinha conversado com ele oficialmente; se ele necessitaria de algum apoio; se gostaria de sair da escala por ora; entre outras perguntas feitas “de corredor”, para tentar auxiliar. As respostas foram todas negativas. Não houve surpresa. Na loucura do trabalho, como salienta Christophe Dejours, há dispositivos para naturalizar o sofrimento e institucionalizar as práticas laborais que em outros contextos não seriam permitidos. Há protocolos? Há elogios, condecorações e, no extremo, a homenagem com fotografias na parede ou nome de turma.

Aliás o processo de “protocolar”, isso é, de fundamentar cientificamente as decisões e institucionalizar as ações, começou a ser uma prática, mas ainda transcorre lentamente. A lentidão decorre, talvez, do insuficiente debate com a sociedade civil para legitimar cada ação, apresentando os fundamentos e a necessidade da ação. Assim, cada instituição tem um conjunto de ações próprios, o EPI, a rotina de trabalho, entre outras, que se tornam mais tentativas isoladas de ajuste às necessidades. Nesse sentido, os trabalhadores da segurança pública trabalham com o que têm: com a viatura que têm, com os EPI que têm e quando os têm, na escala que têm. Não há fundamentação ergonômica e da saúde integral laboral. Assim, além do convívio com a morte, há o convívio com a insegurança da legitimidade da ação policial e com o desgaste psicológico e do corpo não mensurável, pois, se não há parâmetros de trabalho, não há parâmetros de saúde do trabalho.

Esse “efeito colateral do trabalho” individual tem um “contágio” social. A constituição da identidade laboral não só cria uma comunidade no trabalho, mas afasta as comunidades anteriores ou cria barreiras. E o que é entendido como o “fazer segurança pública” no Brasil é mais um elemento de sofrimento do trabalho para os agentes de segurança. Lembro também que ainda no início do curso houve a Greve na NOVACAP, em dezembro de 1999. O desdobramento da intervenção policial na greve foi fatal e entrar no ônibus identificado como policial militar no dia seguinte era assumir uma culpa que não era minha e um resultado que não era meu desejo. Aqueles e aquelas viam e veem em mim a política de governo, de Estado e do sistema político-econômico.

Um sistema de produção de injustiças estruturais, com várias questões sociais próprias do sistema político-econômico sendo contidas pelo sistema de controle, personificado no uniforme, com rosto e endereço. O que era meu emprego naquele momento passou a ser um ente de aproximação e afastamento, dependendo do grupo que estava interagindo e dos seus valores. Como a professora Christiane Girard me ensinou, o trabalho construiu identidade e sentimentos em mim e em outros. O meu local de moradia ainda é o mesmo, os laços afetivos e as interações sociais não são mais.

Isso tudo é potencializado (ou proveniente?) da política de segurança pública tradicional. Digo tradicional porque os combates aos crimes são os vetores orientadores das políticas de diversos governos e de diversos partidos políticos. Tanto nacional, quanto estadual e municipal. Orientam valores institucionais e relações de trabalho (e a militarização também “serve” para isso); orçamentos e atores políticos; e, mais recentemente, favorecem carreiras políticas partidárias, com discursos formatados. Assim, pertencer ao Quadro de Praças Combatentes de uma Polícia Militar e vivenciar as diversas violências laborais, principalmente as psicológicas, é vivenciar as consequências dos diversos interesses políticos, econômicos e sociais de determinados grupos na Segurança Pública. Como comentei inicialmente, há diversas interseções sociais, porque quem sofre e vivencia essas diversas violências são pessoas que têm a vida racializada e são os agentes de segurança do “chão de fábrica”, que atendem ocorrências cotidianamente, são os que “vivem” a/para as instituições policiais, centrais nas políticas de segurança vigentes.

Talvez a esperança diminua a partir do momento em que se percebem essas relações comuns na construção da profissão de agentes de segurança pública, seja civil ou militar. Porque as soluções apresentadas são necessárias, mas incipientes por centrar apenas no indivíduo. Por exemplo, no caso trágico do dia 14 de janeiro, não há mais debate sobre o assunto na mídia, as associações representativas não fomentam mais soluções, e houve apenas a promessa de aumento de contratações de profissionais de saúde mental e o início de um programa de fomento para que os policiais militares solicitem apoio quando perceberem o sofrimento psíquico. É uma simplificação liberal para questões sistêmicas.

Todavia, a lógica da construção das identidades e das suas relações com a comunidade local, as inseguranças e as violências das relações de trabalho, os vetores constituintes das políticas de segurança pública continuam. Infelizmente a minha e a carreira do 2º Sargento começaram. Infelizmente homenageamos postumamente um de nós. Ele foi vítima e agressor no dia 14 de janeiro. Infelizmente, vitimou uma pessoa e várias famílias e amigos; marcou uma nova turma de policiais que se inicia; e fez parte dos vários reinícios de ciclos de violências das diversas gerações profissionais. Isso vai parar? Acredito que a curto prazo não, mas lutaremos criando espaços políticos para que políticas públicas de intervenção imediata e de mudanças institucionais sejam implementadas.

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