Redes insurgentes: a experiência maranhense de construção popular de parâmetros pelo desencarceramento
O massacre de Pedrinhas foi responsável por dar início ao desenvolvimento de uma cultura contínua de controle popular sobre a política penal, tradicionalmente construída e executada sem participação da população e de forma avessa aos ditames da transparência
Cristian de Oliveira Gamba
Pesquisador do LabGEPEN. Doutorando em Direitos Humanos e Cidadania (UnB). Mestre em Direito e Instituições de Justiça (UFMA). Advogado e Psicólogo. Pesquisador da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos
A ampliação dos espaços de participação popular é, sem dúvida, um dos maiores desafios para o estabelecimento de uma política penal que se pretenda mais democrática, plural e transparente e que, a partir dessas diretrizes, consiga subverter a lógica seletiva e violenta que permeia o uso do aparato punitivo estatal.
Na última década, os movimentos sociais maranhenses pelo desencarceramento estruturaram sua articulação política e apresentaram um elaborado repertório de comportamentos de resistência, dando forma a uma ação coletiva responsável por aprimorar os mecanismos de controle social sobre a política penal e, ultimamente, apresentar o embrião de uma proposta de poder popular.
Esse processo de fortalecimento encontra-se cronologicamente associado a um triste evento da história maranhense: o massacre ocorrido na penitenciária de Pedrinhas, localizada na capital, São Luís. Pedrinhas foi cenário de alguns dos maiores massacres ocorridos em unidades prisionais do Brasil, responsáveis por vitimar 171 presos no período de 2008 a 2013[1].
Contudo, os acontecimentos gerados pela onda de violência no cárcere também parecem ter criado as condições propícias para o desenvolvimento de um movimento articulado e contínuo de resistência. Esses movimentos, embora já existentes e atuantes, encontraram ali condições para sua articulação, fortalecimento e ampliação das pautas de luta.
A medida reativa imediata consistiu na solicitação de medidas cautelares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), movimento capitaneado pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos. Em novembro de 2014, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou a conversão das medidas cautelares em medidas provisórias e reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pelas mortes ocorridas no Complexo Penitenciário de Pedrinhas[2].
A decisão da Corte não apenas determinou a necessidade de intervenção estatal sobre a situação de violência ocorrida no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, como também conferiu às entidades peticionárias o papel de controlar o cumprimento das respectivas medidas cautelares. Esse controle ocorre por meio do fornecimento de relatórios periódicos, elaborados pelas organizações da sociedade civil, cujos dados são reunidos a partir de inspeções realizadas e do acompanhamento contínuo da política carcerária desenvolvida pelo Estado.
O caso de Pedrinhas foi responsável por dar início ao desenvolvimento de uma cultura contínua de controle popular sobre a política penal, tradicionalmente construída e executada sem participação da população e de forma avessa aos ditames da transparência. Para além, parece ter aproximado os movimentos sociais da pauta carcerária, tornando-a tema de discussão permanente, levando a alterações no seu repertório de atuação, bem como constituindo e fortalecendo redes de resistência.
Diante de um cenário de conquistas, advindas da pressão popular, temos visto, recentemente, o surgimento de práticas que apontam para uma atualização do repertório de atuação dos movimentos sociais maranhenses, principalmente focalizados na luta pelo desencarceramento.
Nos últimos anos, diversos movimentos sociais maranhenses atuaram ativamente no processo de construção do documento denominado Parâmetros para o desencarceramento no estado do Maranhão[3]. Tal documento é composto por 54 parâmetros construídos inteiramente de forma popular, divididos em 9 seções; foram aprovados em Assembleia Popular e são resultado de 49 reuniões preparatórias realizadas em diversos espaços, como escolas públicas, bairros de periferia, comunidades rurais e grupos de pesquisadores e ativistas.
O documento conta com as vozes de moradores de bairros de periferia, alunos de escolas públicas, integrantes de organizações da sociedade civil, pesquisadores do campo criminal, povos indígenas, população LGBTQIAP+, pessoas com deficiência e defensores de direitos humanos ameaçados. Trata-se da corporificação de uma indignação, de um desejo de se insurgir contra as injustiças e violências que permeiam o ambiente carcerário.
Após diversos diálogos, revisões e acréscimos, o texto final do documento foi levado para aprovação em Assembleia Popular realizada no dia 7 de dezembro de 2022. A estratégia seguinte consistiu na apresentação do documento em audiência pública[4], realizada em 17 de agosto de 2023. O evento contou com a participação de representantes dos três poderes, bem como de diversos órgãos e agências estatais, e foi marcado pelo comprometimento das autoridades estatais com o cumprimento dos parâmetros. Uma segunda audiência pública ocorreu em setembro de 2024, tendo como tema central a apresentação das medidas tomadas após um ano da realização da primeira audiência pública.
Embora ainda não seja possível dimensionar os efeitos concretos dessa empreitada, é de se dizer que, sem dúvidas, trata-se de uma proposta inovadora, ousada e insurgente, construída, refletida e assinada por sujeitos historicamente despotencializados, mas que, unidos e atuantes, são capazes de enfrentar a lógica opressora de um Estado que se utiliza do argumento da segurança pública para extirpar vidas pobres, negras e periféricas.