Múltiplas Vozes

Quem não marchar direito, não vai mais preso pro quartel

As medidas privativas de liberdade, nos moldes em que são aplicadas, não podem subsistir, pois afrontam diretamente preceitos estatuídos na Constituição Federal

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Felipe do Rosário Ferreira

Pós-graduando em Direito Constitucional e Administrativo (PUC-RS)

Arnaldo Vieira Sousa

Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão

O policial militar, no exercício da sua função, submete-se a regras deveras rígidas, isso porque muito do que existe no âmbito militar das Forças Armadas é aplicado também na polícia. Uma dessas regras é o cerceamento da liberdade enquanto medida corretiva de conduta funcional ilícita. Ou seja, os policiais militares, a exemplo do que ocorre com os membros das Forças Armadas, submetem-se à prisão como mecanismo de punição de atos contrários ao dever funcional.

Essas medidas têm fundamento constitucional no artigo 5º, LXI da CRFB/88 que afirma: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. A prisão disciplinar, a priori, é constitucional, vez que a própria Constituição a prevê. Existe aqui um problema: as medidas privativas de liberdade em decorrência de transgressões disciplinares são aplicadas atualmente com base no Decreto nº 4.346/2002 – Regulamento Disciplinar do Exército – RDE e não em uma lei, como exige a CRFB/88.

É importante enfatizar que a expressão “definidos em lei”, contida no texto, encontra-se no plural, logo, apenas duas interpretações são possíveis: ou diz respeito apenas a “nos casos de transgressão militar” ou aos casos de transgressão militar e crime propriamente militar. Em suma, “definidos em lei” não pode referir-se exclusivamente a “crime propriamente militar”, pois esta encontra-se no singular, enquanto aquela encontra-se no plural.

A título de exemplo, a transgressão nº 85 prevê: “Desrespeitar, em público, as convenções sociais”, surgem as seguintes perguntas: que convenções sociais? Onde estão mencionadas? Pode desrespeitar se não for em público? Outra transgressão é a nº 111, que afirma: “Falar, habitualmente, língua estrangeira em Organismo Militar”. É até difícil de acreditar que isso consta no Decreto, mas consta – e pior -, na prática, pode ser cobrado.

Diante de tanta problemática e de diversos debates, a matéria, há muito, reclamava solução. Nesse intento, surgiu, primeiramente, a ADI nº 3340, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, que buscava declarar a inconstitucionalidade das prisões disciplinares, porém, a ação não foi conhecida. Por conta disso, o problema seguiu sem solução, pelo menos no âmbito nacional.

Apesar de tardia, foi publicada no Diário Oficial da União no dia 27 de dezembro de 2019 a Lei nº 13.967/2019, que pretende encerrar de uma vez por todas a discussão sobre as medidas que violam o direito fundamental à liberdade dos policiais militares, desta feita, em âmbito nacional, deixando bem clara a extinção dessas sanções.

O texto da lei é expresso, motivo pelo qual não se tem muito a pontuar. O artigo 2º da norma ora analisada informa a nova diretriz do artigo 18 do Decreto-Lei nº 667/1969, que passa a vigorar com a redação que impossibilita qualquer tipo de medida atentatória à liberdade do policial militar.

Por esse dispositivo, não resta dúvida que a lei pôs fim ao problema ou, pelo menos, veio para isso. A Lei nº 13.967/2019, como já dito, visa encerrar de uma vez por todas punições dessa natureza, que violam direito fundamental por vias administrativas, ferindo diversos princípios constitucionais. Ocorre, porém, que a lei é recente e, por esse motivo, pairam ainda alguns questionamentos quanto à produção dos seus efeitos.

A Lei nº 13.967/2019 ratifica os Direitos Humanos dos policiais militares, que já era preconizado pelas Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública, através do artigo 1º da Portaria Interministerial nº 02 de 2010.

A liberdade, mais que um direito, revela-se como um ideal, quase que como uma condição da própria existência humana. Os entraves na liberdade do policial militar são muitos, devendo cada um carregar, além de todas as intempéries da profissão, a árdua missão de resistir àqueles que insistem em violar direitos básicos.

As medidas privativas de liberdade, nos moldes em que são aplicadas, não podem subsistir, por todos os motivos já delineados, visto que afrontam diretamente preceitos estatuídos na CRFB/88, além de revelarem-se como inadequadas para o objetivo a que se propõem. Dessa forma, na maioria dos casos, constituem nada mais que medida de demonstração de força de um superior para com o subordinado.

A liberdade de um indivíduo não pode ceder lugar a caprichos de superiores, devendo, pelo contrário, sobrestar-se a estes, posto que assegurada constitucionalmente. Os quartéis não estão imunes à previsão constitucional e nem constituem “ilhas” onde as normas estão alheias ao Estado Democrático de Direito.

Nesse cenário, a Lei nº 13.967/2019 mostra-se como um instrumento imprescindível no combate às mazelas ocorridas no seio da caserna, extinguindo as privações de liberdade e, com isso, evitando a continuação da cultura do medo já instaurada do âmbito militar, na qual ordens absurdas são cumpridas por receio da prisão.

É sabido que muitas são as resistências à Lei nº 13.967/2019, e já estão se mostrando. Porém, ela apenas confirma o que já consta na Constituição – mas era desconsiderado -, motivo pelo qual não se pode cogitar de sua invalidade. Independentemente das vozes contrárias, o seu conteúdo reitera a importância do respeito à liberdade, o que solidifica as normas constantes na Constituição Federal de 1988 e enaltece o Estado Democrático de Direito.

*Texto adaptado da nota técnica publicada na Revista Brasileira de Segurança Pública, edição 29.

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