Quem monitora os monitorados? A expansão do monitoramento eletrônico e a precariedade das condições institucionais de acompanhamento
O Brasil conta hoje com apenas 181 profissionais para acompanhamento direto de monitorados em todo o território nacional — o que significa, na prática, um servidor para cada 674 pessoas com tornozeleira. Esse crescimento recorde de pessoas monitoradas exige do Estado mais do que tecnologia, cobrando equipes qualificadas, critérios judiciais claros e transparência para que a tornozeleira funcione como alternativa ao encarceramento
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociólogo. Professor Titular da Escola de Direito da PUCRS
Matéria publicada no jornal O Globo [1] chamou atenção para o recorde no uso de tornozeleiras eletrônicas no Brasil. Em 2024 já havia mais de 120 mil pessoas. O país mantém hoje mais de 900 mil pessoas sob custódia do sistema penal, considerando presos provisórios, condenados em regime fechado e semiaberto, pessoas em prisão domiciliar e monitorados eletronicamente. A expansão do monitoramento eletrônico revela um ponto de inflexão nas formas de controle penal, deslocando parte da punição para fora dos muros prisionais. Mas essa tendência, que poderia significar uma política descarcerizante e inovadora, tem sido marcada por um descompasso estrutural entre a escala tecnológica alcançada e a fragilidade das condições institucionais para garantir acompanhamento, critérios judiciais e proteção de direitos.
Segundo a referida reportagem, o Brasil conta hoje com apenas 181 profissionais para acompanhamento direto de monitorados em todo o território nacional — o que significa, na prática, um servidor para cada 674 pessoas com tornozeleira. Esse dado confirma uma advertência já presente no relatório produzido pelo CRISP-UFMG para o Conselho Nacional de Justiça em 2022[2]: a tornozeleira, se desprovida de suporte técnico, fluxos interinstitucionais e revisão judicial periódica, deixa de ser uma alternativa à prisão para se tornar uma nova fronteira da punição contínua, operando como uma “prisão sem muros” e, muitas vezes, sem garantias. O risco, portanto, não está na tecnologia em si, mas na ausência de uma política pública que integre o monitoramento eletrônico a uma política penal e social de redução do encarceramento e controle penal eficaz.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio do Programa Pena Justa, tem buscado corrigir esse desequilíbrio, ao exigir a criação de centrais de monitoração com equipes multidisciplinares, compostas por assistentes sociais, psicólogos e profissionais do direito, e ao propor a padronização de indicadores para aferir efetividade, reincidência, fluxo de alertas e qualidade da execução penal. O primeiro informe nacional do programa[3], divulgado em 2025, mostrou o avanço formal da política, mas também revelou desigualdades profundas entre os estados, com algumas unidades federativas ainda operando sem protocolos mínimos de análise de violações ou canais de comunicação adequados com o Judiciário. Enquanto os alertas de violação continuam sendo emitidos de forma automática, sem filtragem técnica prévia, as varas de execução penal seguem sobrecarregadas, decidindo a partir de relatórios brutos, muitas vezes oriundos de falhas de GPS ou perda de carga de bateria.
O caso do Rio Grande do Sul ilustra bem esse cenário de transição entre expansão tecnológica e carência institucional. O estado avançou ao capilarizar seu sistema de monitoração por meio das IPMEs – Inspetorias de Monitoramento Eletrônico –, distribuídas por regiões penitenciárias, o que permitiu reduzir filas e ampliar a cobertura territorial. Em 2024, após nova licitação, conseguiu ainda reduzir os custos unitários do equipamento e zerar a espera por instalação. Além disso, implementou canais diretos de atendimento a monitorados e familiares, medida importante para evitar que falhas operacionais sejam transformadas em supostos descumprimentos. No entanto, mesmo esse modelo mais estruturado não dispõe de um painel público consolidado com dados sobre reincidência, tempo médio de resposta a alertas, classificação de violações ou desfecho judicial. Na prática, ainda se depende da sensibilidade do magistrado e da estrutura local da vara para distinguir um rompimento deliberado de tornozeleira de um erro técnico ou de uma tentativa de recarga em áreas sem cobertura de sinal.
A monitoração eletrônica pode cumprir um papel relevante na política penal brasileira, sobretudo na substituição de prisões provisórias e no acompanhamento de medidas protetivas em casos de violência doméstica. Ela permite preservar vínculos familiares e de trabalho, viabiliza rotinas fora do cárcere e pode oferecer respostas mais proporcionais e eficazes em casos de menor gravidade. Mas, para isso, deve ser usada com critério e transparência. O uso automático e irrefletido da tornozeleira, por mero temor de revogação ou busca administrativa por controle, opera na contramão de sua função e contribui exclusivamente para uma expansão descontrolada do sistema punitivo. Como demonstram estudos empíricos do próprio CRISP-UFMG, pessoas com tornozeleira frequentemente sofrem estigmatização social, barreiras de emprego e vigilância comunitária, sem acesso a qualquer serviço de apoio ou acompanhamento psicossocial.
Para uma política pública que leve a sério a monitoração eletrônica, é indispensável ampliar as equipes técnicas das centrais, estabelecer protocolos de triagem de alertas com classificação de gravidade, integrar os bancos de dados com defensores e juízes e garantir revisão periódica das medidas, evitando que a tornozeleira se transforme em pena perpétua fora do cárcere. Mais do que isso, é necessário publicar dados mensais sobre fluxo de entrada e saída, tipos de violações, tempo de resposta, ocorrência de reincidência e perfil dos monitorados, permitindo que sociedade civil e pesquisadores avaliem se a medida está reduzindo ou apenas deslocando o encarceramento.
Ao reconhecer que o Brasil precisa reduzir sua população prisional, sem abrir mão da persecução penal, tampouco do enfrentamento à impunidade, a monitoração eletrônica não deve ser descartada, mas aperfeiçoada. Os relatórios técnicos já apontaram os caminhos: é indispensável que os estados estabeleçam equipes multidisciplinares com dimensão adequada ao número de monitorados, criem protocolos públicos de triagem de alertas e garantam comunicação ágil entre as centrais e o Poder Judiciário, evitando que falhas técnicas se convertam em decisões punitivas. Também é necessária a revisão periódica das medidas, com registro transparente de dados sobre reincidência, tempo de resposta e critérios de desligamento, de forma a impedir que a tornozeleira se torne uma pena indefinida. A verdadeira inovação não está no dispositivo, mas na capacidade do Estado de substituir o encarceramento automático por uma política de acompanhamento, orientação e devida reintegração social.
[1] ASSAD, Paulo. Com recorde de tornozeleiras eletrônicas, Brasil deveria ter dez vezes mais profissionais para acompanhar presos. O Globo, Rio de Janeiro, 08 out. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/. Acesso em: 10 out. 2025.
[2] CENTRO DE ESTUDOS DE CRIMINALIDADE E SEGURANÇA PÚBLICA (CRISP/UFMG). Monitoramento eletrônico no sistema de justiça criminal brasileiro: diagnóstico, desafios e recomendações. Relatório técnico apresentado ao Conselho Nacional de Justiça. Belo Horizonte: UFMG, 2022.
[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Programa Pena Justa: Relatório de Monitoramento das Centrais de Monitoração Eletrônica – 1ª Edição. Brasília: CNJ, 2025.