Múltiplas Vozes 19/02/2025

Quem escuta os trabalhadores da segurança pública? Reflexões sobre as condições de trabalho e saúde mental na perspectiva dos próprios policiais

Novos estudos profissiográficos, contando com as categorias policiais que não fizeram parte do primeiro, como policiais federais, rodoviários federais, penais, científicos e guardas municipais ofereceriam uma riqueza de evidências para melhores políticas públicas que afetam a vida dos trabalhadores da segurança pública

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Lívio José Lima-e-Rocha

Investigador de Polícia e Professor de Gestão Pública na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre (FGV) e doutorando (UFABC) em Políticas Públicas. Membro sênior e conselheiro fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A literatura do campo de políticas públicas, especialmente aquelas relacionadas com implementação, não tem a menor dúvida em classificar os trabalhadores da segurança pública como burocratas de nível de rua[i]: servidores públicos operacionais cuja autonomia e discricionariedade podem ser decisivas para uma política pública funcionar ou não. No popular, são a “cara” da administração para o público atendido. Nesse processo, os policiais precisam escutar ativamente a população para poder decidir quem será atendido (problema pode ser não-criminal), quando será atendido (casos envolvendo morte e lesão têm prioridade sobre outros, por exemplo), como será atendido (flagrante? Indícios de autoria?) e qual será a solução do caso (mero registro? Investigação imediata? Perícia necessária?).

Por outro lado, diversos problemas e soluções que envolvem os trabalhadores da segurança pública vêm sendo discutidos sem que eles sejam efetivamente escutados…ou isso não seria necessário?

Dentro das perspectivas desse processo de não escuta dos policiais, vamos enfatizar os dois pontos que consideramos mais importantes: o exercício profissional e a saúde mental.

Em 2012, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP/MJ) publicou o “Estudo profissiográfico e mapeamento de competências – perfil dos cargos das instituições estaduais de Segurança Pública”. Com uma amostra válida de mais de 20 mil policiais de um universo aproximado de 400 mil, esse estudo, partindo da escuta dos policiais militares, policiais civis e bombeiros militares, demonstrou o que um policial acredita ser necessário para exercer sua profissão (competências e condição de trabalho), quais realmente são as atribuições da profissão (levantamento de tarefas) e quais os problemas que encontra no exercício profissional (fatores restritivos/dificultadores). Esse estudo tornou expressa opinião dos próprios policiais sobre o seu trabalho, especialmente sobre o que é mais importante ou difícil, o que, frequentemente, desafia o senso comum sobre o tema.

Nesse estudo, podemos ver achados interessantes. No caso dos policiais civis, as tarefas mais difíceis são comparecer e preservar o local de crime, escoltar presos, participar de reconstituição de crimes, fiscalizar locais sujeitos ao controle da polícia e participar de operações policiais. As tarefas mais importantes são: zelar pelos bens, equipamentos e instalações físicas; participar de curso de capacitação e especialização, comparecer e preservar o local de crime, realizar campanas, entrevistar partes, solicitar perícia, efetuar levantamentos locais, investigar infrações penais e consultar sistemas informatizados. As tarefas mais frequentes são: zelar pelos bens, equipamentos e instalações físicas; dirigir viaturas, consultar sistemas informatizados, cumprir ordens de serviço/missão, entrevistar partes e investigar infrações penais.

Somente nesse apanhado já temos diversas tarefas que, certamente, teriam sua dificuldade, importância e frequência reavaliadas pelos policiais civis. A mudança de escolaridade dos cargos de nível médio para superior nos últimos 13 anos, a subida vertiginosa da informatização e velocidade da transmissão de dados, o ensino policial remoto e afins são exemplos de evoluções que afetariam a avaliação dos policiais caso um estudo similar fosse feito hoje.

Em relação aos problemas apontados pelos policiais civil nesse estudo, temos: ingerência de autoridades/influência política na atuação policial, falta de transparência de indicação de gerência, insubordinação, falta de identificação com a função de polícia, descompromisso do gestor, entre outros. No caso desses problemas, não cabe apenas refletirmos se eles continuam atuais. Precisamos refletir se as políticas públicas conexas com esses problemas vêm tentando solucioná-los ou continuam sendo ignoradas. As políticas de bonificação por resultado para policiais, por exemplo, afetam, ignoram ou reforçam esses problemas apontados pelos policiais desde 2012? As novas leis orgânicas das polícias civis procuraram (ou estão procurando, no caso daquelas que ainda não foram publicadas) solucioná-los ou não foram considerados importantes?

Na perspectiva específica da saúde mental dos policiais, o cenário sobre escuta dos policiais não parece produzir melhores resultados. Considerando os três grupos (policiais civis, militares e bombeiros militares), foram relatados no estudo da SENASP de 20212 problemas que afetam, em maior ou menor grau, a saúde mental dos policiais, como falta de comprometimento, falta de motivação, machismo, falta de apoio ao policial ferido e assédio moral. Felizmente, nessa perspectiva são mais frequentes os estudos atualizados nos quais o policial é escutado sobre como o trabalho afeta a sua vida, como aqueles que mencionam os problemas no trabalho como motivo de ideação suicida[ii]; salário e organização do trabalho como entraves do desenvolvimento da carreira[iii] e outros.

Nosso foco não é pleitear um novo estudo profissiográfico para a SENASP/MJ. O cerne da questão é como tantas políticas relacionadas com os policiais estão sendo produzidas tratando como irrelevante a opinião deles. Nesse sentido, novos estudos profissiográficos, contando com as categorias policiais que não fizeram parte do primeiro, como policiais federais, rodoviários federais, penais, científicos e guardas municipais, inclusive nos Estados e municípios, ofereceriam uma riqueza de evidências para melhores políticas públicas que afetam a vida de todos os trabalhadores da segurança pública. O mesmo pode ser dito para estudos focados na saúde mental dos policiais: é um público tão específico que muitos policiais reclamam que não são compreendidos quando procuram ajuda profissional que não possua histórico ou conhecimento do cotidiano policial. Como é possível que governantes formulem políticas de saúde mental para policiais sem essa escuta?

Algumas pessoas poderiam alegar que não há previsão legal ou costume de consultar os policiais porque isso não é feito com outras categorias. O problema desse raciocínio é desconsiderar todas as contribuições que os policiais podem dar sobre o seu próprio trabalho.

 

REFERÊNCIAS
[i] Refletimos detalhadamente sobre a aplicação do conceito de burocracia de nível de rua para investigadores de polícia em https://www.academia.edu/120784146/Aplicabilidade_do_conceito_de_burocracia_de_n%C3%ADvel_de_rua_aos_investigadores_de_pol%C3%ADcia_da_Pol%C3%ADcia_Civil_do_Estado_de_S%C3%A3o_Paulo.
[ii]  MIRANDA, D. Por que policiais se matam? – Diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1a. ed. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2016.
[iii]  CUBAS, V. D. O.; ALVES, R. A.; OLIVEIRA, A. R. Tão diferentes e tão iguais: As percepções de policiais civis e militares de São Paulo sobre suas instituições. Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 13, n. 3, p. 801–825, 14 set. 2020.

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