Profissão Polícia

Qual é a finalidade do militarismo nas polícias?

Condenação a um ano de detenção de policial do Distrito Federal que deixou de lavar viatura reaviva discussão sobre aplicação de regulamentos castrenses à corporação da Polícia Militar

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A matéria chama atenção: “PM do DF é condenado a 1 ano de detenção por não lavar viatura”. A notícia foi divulgada pelo site Metrópoles, em 26 de janeiro de 2022. A situação parece absurda, porquanto a pena imposta se demonstra desproporcional ao fato ocorrido. Isso seria impensável no mundo civil; contudo, no universo paralelo do militarismo, é plenamente justificável. É fato. A condenação do policial militar, por mais esdrúxula que pareça, encontra embasamento no ordenamento jurídico castrense. Com efeito, à luz do devido processo legal, com direito ao contraditório e à ampla defesa, um policial militar foi sentenciado à detenção por não limpar um automóvel da corporação.

Ao deixar de higienizar a viatura após o serviço, o policial militar transgrediu normativo expresso da PMDF. Mas isso não foi só um entrevero funcional, pois o policial praticou um crime militar. Ora, essa situação encontra fundamento no Código Penal Militar, que prevê inúmeras tipificações próprias para militares recalcitrantes. No caso em questão, aplicou-se ao policial punição estabelecida no rol dos crimes de insubordinação. Particularmente, ele cometeu o crime de recusa de obediência do Código Penal Militar, prescrito no artigo 163, sendo: “recusar obedecer a ordem do superior sobre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever imposto em lei, regulamento ou instrução”.

Nota-se: um policial militar do Distrito Federal foi enquadrado como insubordinado por não ter limpado a viatura que estava sob sua responsabilidade. Ele infringiu especificamente o item 5 da Portaria nº 752/2011, da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF): “ao usuário final do bem (motoristas) compete a conservação (limpeza interna e externa) e segurança das viaturas policiais militares, em razão de sua responsabilidade pelo uso. Desta forma, este deverá cuidar pela higiene e pela condução da viatura em obediências às regras de trânsito”. Também desrespeitou o Memorando nº 002/2019, da Subseção de Justiça e Disciplina (SsJD/PMDF). Em suma, pelo fato de não ter cumprido uma tarefa, foi acusado de perpetrar o crime de recusa de obediência. Destaca-se que o crime não foi deixar a viatura suja, mas atentar contra regulamentos da corporação.

O policial militar tentou se defender com o argumento de que a ordem era absurda e ilegal, bem como que desconhecia a integralidade da prescrição normativa; contudo, as alegações não foram suficientes. Para ele, na condição de praça, caberia conhecer e acatar as normas. Nesse caso, repito, a desobediência do policial não ficou no nível de infração disciplinar, porém alcançou status de crime militar. O núcleo desse crime é afrontar diretamente as colunas do militarismo, a saber a hierarquia e a disciplina. Assim, o policial militar insurgente às normas e aos superiores foi considerado um desviante que deve ser exemplarmente punido para o bem da ordem militar. Esse foi o entendimento exaustivamente detalhado no acordão da 3ª Turma Criminal, do TJDFT.

O que aconteceu com o policial militar do DF não foi um caso isolado; é a regra nas polícias militares. Ora, essas corporações reproduzem o modelo das Forças Armadas, com culturas, estruturas, ordenamentos. Daí a reverência aos institutos da hierarquia e disciplina. Desse modo, consta expressamente no Estatuto dos Policiais-Militares da PMDF (Lei nº 7.289/1984), que a disciplina é “a rigorosa observância e acatamento integral da legislação que fundamenta o organismo policial-militar e coordena seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo, perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo”. Nesse sentido, a disciplina pressupõe o respeito à hierarquia, que, segundo a citada lei, “é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura da polícia militar”. Com efeito, o ato do policial de não limpar a viatura se configurou numa ofensa à disciplina e uma quebra de hierarquia.

No entanto, fora do metaverso do militar seria razoável estabelecer como crime discutir a legitimidade de um regulamento? Ora, nas corporações militares há diversas normas que visam a disciplinar condutas dos subordinados, sendo que um militar do Exército pode ser enquadrado num crime pelo simples fato de não fazer a barba, conforme os padrões estabelecidos. Não convém discutir aqui a razão disso na caserna; agora, será que esse modelo é o adequado para as polícias? Será que, com o formato castrense, as polícias militares brasileiras estão proporcionando melhores serviços à sociedade? Enfim, o militarismo nas polícias é necessário para prestação do serviço de segurança pública?

Nada disso foi examinado, manteve-se restritos aos autos. A Justiça não questionou a acusação contra o policial – um agente do Estado – pelo simples fato de ter deixado de lavar a viatura. Ora, a manutenção da norma castrense foi muito mais importante do que julgar a insignificância do fato. Aliás, a Justiça não avaliou se a conduta do servidor prejudicava o seu ofício de polícia, mas simplesmente a situação de ele não ter obedecido a uma norma interna da corporação. Os superiores do policial militar talvez não tenham mensurado se o acontecido significava grave empecilho ao exercício de sua atividade policial. Quase nada disso importou, o problema foi a recusa à norma emanada dos superiores.

Ora, a condenação do policial militar do Distrito Federal por ter deixado de lavar viatura serve para avaliar não a conduta do agente insurgente; porém para refletir sobre o sentido do militarismo nas polícias. No caso em tela, o militarismo conveio para criminalizar o servidor por não ter cumprido uma rotina funcional, mesmo que sem óbvia relação com as suas atribuições finalísticas de policial. Ademais, o militarismo pouco serviu para o desenvolvimento de um profissional mais capacitado para o ofício policial, porém demasiadamente para demarcar o imperativo de um agente disciplinado e submisso às regras e aos procedimentos militares.

A viatura em questão provavelmente foi devidamente limpa posteriormente, de acordo com ordens da corporação. Agora o policial se encontra com antecedentes criminais no seu registro funcional pela recusa de não ter limpado uma viatura. Assim, prossegue a marcha do militarismo nas polícias ostensivas brasileiras formatando corpos e mentalidades, mesmo sem saber se isso contribui para as corporações e seus integrantes, tampouco para prestação do serviço de segurança pública.

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