Fernanda Bassani
Psicóloga, Especialista em Polícias e Segurança Pública, Doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS)
“É um velho e irônico hábito do ser humano o de correr mais rápido quando se está perdido.” A frase clássica de Rollo May, psicólogo norte-americano, diz respeito a uma conduta tradicional no campo da segurança pública: a de “apagar incêndios” diante de situações graves, que poderiam ter sido prevenidas ou minimizadas, se houvesse planejamento anterior.
Devemos ser justos: o meio policial vive uma sobrecarga de trabalho constante. Junto aos altos índices de violência urbana, os profissionais lidam com uma grande quantidade de “ilegalismos” (PIRES et all, 2020), como o “gato” na rede elétrica e a venda de produtos piratas, que se tornaram marcas culturais da sociedade brasileira. Na dúvida sobre o que priorizar, o carimbo de “urgente” dado pelo chefe acaba se tornando a bússola do trabalho. O gestor, por sua vez, responde a pressões da mídia e da política e, não raro, a troca de um chefe leva à recriação de fluxos e normas, em prol do desejo de deixar “a marca da gestão”. Os novos policiais são os que mais sofrem com essa atuação confusa, tendo seu risco de vida aumentado ao se atirarem ao “apagamento de incêndios” sem a padronização técnica necessária. Daí a maior incidência de acidentes de trabalho (MINAYO et all, 2007) nos primeiros anos de corporação.
No âmbito da gestão policial, esse cenário começa a mudar nos anos 2000 com a implementação em muitos estados da “Gestão por Resultados (GPR)” ou os “Programas de Metas”, inspirados em programa criado pela polícia de Nova York em 1994. Mesmo com pontos a serem aperfeiçoados, esses programas criaram indicadores, metas por policial e equipe, “hot spots” (locais com mais incidência de crimes), integração entre corporações, bem como protocolos para monitoramento dos resultados, com redução de crimes em pelo menos dez estados (BID, 2022). Em seu escopo eles traziam duas etapas decisivas: 1. Escutar os policiais para entender a média de esforço e tempo de cada delito, mensurando pontos adequados para cada tipificação. 2. Criar um Comitê Gestor com envolvimento dos altos escalões da polícia e pessoas de referência em cada nível da implementação do programa.
Na última década, as corporações têm se deparado com um inimigo diferente: o adoecimento mental de seus servidores, expresso no suicídio de 118 policiais em 2024 (ABSP, 2024). É o primeiro ano em que o autoextermínio superou as perdas em confrontos com criminosos nas folgas, com aumento de 26% dos suicídios e diminuição de 18% das mortes pelas mãos inimigas. Além disso, semanalmente eclodem notícias de policiais que mataram esposa, filho ou desconhecidos em conflitos banais que têm a própria arma e o desequilíbrio emocional como ingredientes. Essa “epidemia de adoecimento mental nas polícias”, motivou em 2019 a criação de uma seção no Anuário Brasileiro de Segurança Pública para tratar do suicídio de policiais. Pela primeira vez os policiais aparecem como vítimas do sistema e podem ser considerados sujeitos vulneráveis.
A resposta dos órgãos de segurança pública tem sido a criação de leis enfocando a saúde mental dos policiais, como a Lei do SUSP (Lei nº 13675/2018), que recomenda a criação do Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró-vida) e a Lei nº 14.531/23, focada na “prevenção dos suicídios e na política de promoção dos direitos humanos dos profissionais de segurança pública”. Junto ao Pró-vida, recursos financeiros são ofertados aos estados que se esforçam em criar Departamentos de Saúde e ações para pleitear tais verbas.
Agora é o momento de cada corporação aprender com as experiências dos Programas de Metas, que lançaram mão de ferramentas científicas e etapas padronizadas. Construir um plano estratégico para a saúde mental de policiais deve ser a prioridade de cada corporação, considerando algumas etapas como:
1- Reuniões com profissionais de saúde mental da corporação para obter história do trabalho desenvolvido, planilhar atividades existentes/possíveis e obter sua percepção sobre fatores protetivos/de risco, fluxos de trabalho e protocolos;
2 – Reuniões de gestores (Dep de Saúde, Formação e Estratégicos) com profissionais de saúde de notório saber na área para definir objetivos, indicadores, atividades, público prioritário, atribuições, fluxos, monitoramento e Comitê Gestor;
3 – Grupos focais com os policiais para obter sua percepção do adoecimento e Pesquisa de Clima Institucional[1];
4 – Rastrear policiais adoecidos em risco elevado de suicídio e/ou homicídio compondo um banco de dados, com acompanhamento multidisciplinar e monitoramento constante;
5 – Reuniões com Conselhos Regionais de Psicologia e Serviço Social, para obter subsídios éticos;
6 – Construir capacitações de conhecimentos em saúde mental para formar “policiais multiplicadores”;
7 –Parcerias com universidades para pesquisas, banco de dados e acesso a metodologias com evidências de eficácia
8 – Definir e treinar Equipe Especial de Plantão, para manutenção de telefone de sobreaviso e atuação em casos extremos;
Considerando que o foco do trabalho envolve o psiquismo dos policiais, o momento favorece a sistematização de conhecimentos de um campo pouco abordado em universidades do Brasil: a Psicologia Policial. Nos Estados Unidos, a American Psychological Association (APA) a reconhece como especialidade desde 2013, definindo-a como:
“Um conhecimento especializado da ciência psicológica sobre a natureza do trabalho policial para garantir que a aplicação da lei ocorra de forma segura, eficaz, ética e legal, considerando os policiais como elementos essenciais e ativos da comunidade” (APA apud BASSANI, 2024).
A perspectiva norte-americana estabelece quatro pilares básicos: Avaliação (admissionais, retirada de arma, aptidão para o trabalho, etc); Intervenção Clínica (foco em Psicoterapia Breve, com ênfase em incidentes críticos do trabalho e crises pessoais provocadas pelo trabalho); Suporte Operacional (negociação de reféns, mediação de conflitos e suporte a investigação criminal); Consultoria Organizacional (consultoria de gestão, treinamento e desenvolvimento organizacional).
No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia ainda não a inclui entre as 13 especialidades, nem possui Comissão de Trabalho para orientar tais práticas, que ficam diluídas no escopo da Psicologia Jurídica (Res. 03/2022). Nas corporações, a PC de Santa Catarina e a do Espírito Santo dispõem do cargo de psicólogo policial e os demais Estados possuem psicólogos cedidos ou contratados, cujos conhecimentos produzidos requerem um esforço nacional de sistematização, padronização e avaliação de eficácia (BASSANI, 2024).
Um traço da Psicologia Policial nos EUA e Europa é ser influenciada pelo paradigma da Segurança Pública baseado em evidências, que diz que qualquer projeto só deve ser desenvolvido se houver pesquisas que comprovem sua eficácia. No Brasil há poucos estudos randomizados no tema, sendo um texto balizador o artigo de Caciari et all. (2024) que analisou 26 experiências com evidências. Temos ainda as pesquisas do Instituto Internacional dos Chefes de Polícia (IACP), que apontam quatro ações eficazes contra o suicídio:
1 – COLETA DE DADOS: criar dados e pesquisas sobre fatores de risco, proteção e resposta ao tratamento;
2 – MUDANÇA CULTURAL COM FOCO NA SAÚDE MENTAL: criar serviços internos de saúde mental com acesso facilitado e investir em mensagens sistemáticas sobre saúde;
3-PROGRAMAS DE SUPORTE ENTRE PARES: formar policiais na prevenção do suicídio (resiliência, afinidade interpessoal, busca de ajuda, recuperação e confidencialidade);
4- CRIAR PROGRAMAS DE APOIO ÀS FAMÍLIAS E ÀS FAMÍLIAS SOBREVIVENTES.
(Relatório do Consórcio Nacional para a prevenção do Suicídio na Força Policial, IACP, 2023)
Por fim, podemos tomar como referência os avanços do campo da Psicologia das Emergências, que possuem protocolos técnicos (MS, 2024) criados diante da intensificação dos desequilíbrios climáticos. Nas polícias, dúvidas de outra natureza precisam ser respondidas:
– Como intervir numa prevenção e posvenção de suicídio?
– Qual a abordagem diante de casos de policiais denunciados por violência doméstica que se encontram desequilibrados emocionalmente?
– Qual o passo a passo diante da necessidade de retirada de porte de arma por questões de saúde mental?
No campo da saúde mental, as tragédias apresentam as primeiras manifestações nas profundezas do interior humano, sendo invisíveis a olhos não treinados. Mas as corporações precisam vencer o novo inimigo do adoecimento mental aliando-se à psicologia para que o fogo não se alastre, seja por falta de recursos ou por precipitação impulsiva.