Política e Polícia 03/04/2024

Polícia Federal: cinco desafios de uma instituição policial octogenária

É preciso que o trabalho da Polícia Federal, tão essencial à democracia brasileira, seja convertido em louros à própria instituição, e não a um ou outro ator

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Lucas Batista Pilau

Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Andréa Lucas Fagundes

Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

No último dia 28 de março, o Departamento de Polícia Federal, ou simplesmente a Polícia Federal, completou oitenta anos de sua existência, tornando-se, portanto, uma instituição octogenária. Apesar de oito décadas se constituírem como um marco para qualquer instituição brasileira, em termos relacionais ainda podemos considerar a Polícia Federal um órgão de Estado recente, se a compararmos com a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, com o Supremo Tribunal Federal ou mesmo com as polícias estaduais, cuja origem remonta à chegada da família real portuguesa no Brasil no início do século XIX. Em colunas anteriormente publicadas no Fonte Segura, abordamos uma série de temas que buscavam explicar fenômenos conjunturais a partir dos processos histórico e político que a Polícia Federal atravessou, tais como a autonomia do órgão[1], o papel das adidâncias[2], as mudanças na política interna[3], as resistências internas a possíveis intervenções do governo federal[4] e os novos padrões que colocaram o órgão no centro do “combate à corrupção”[5]. Por ocasião da comemoração que passou, neste texto centramos esforços em refletir sobre cinco desafios dessa instituição.

O primeiro se refere à relação histórica da Polícia Federal com a política partidária, situada em dois eixos: de fora para dentro e de dentro para fora da corporação. No primeiro eixo, estão as tentativas do mundo político de dobrar a Polícia Federal às suas lógicas, o que, por ela ser uma polícia judiciária e investigativa, pode acarretar efeitos desastrosos para a democracia brasileira. Isso pode ocorrer a partir de uma troca do Diretor-Geral injustificada ou realizada para satisfazer interesses particulares, com pedidos para que aliados internos sejam posicionados em cargos de chefia, como as Superintendências Regionais, e outros tipos de pressão em nível nacional e estadual. No segundo, temos a adesão de atores do órgão a estruturas político-partidárias. Nas seis eleições à Câmara dos Deputados que ocorreram nas últimas duas décadas, foram mais de cem candidaturas de atores vinculados à Polícia Federal no total. A maior parte dos candidatos não foi eleita e retornou às fileiras da corporação (Pilau, 2024). Esses eixos colocam para a instituição o desafio de debater mecanismos que permitam integrá-la à política – sobretudo ao programa de segurança pública do governo federal – sem submetê-la a desmandos e ideologias político-partidárias.

As adversidades que a vinculação ao mundo político-partidário podem trazer à Polícia Federal por vezes encontram raízes em um segundo desafio: o de converter a legitimidade acumulada pela Polícia Federal em proveito da instituição e não de atores específicos. Dito de outra forma: é preciso que o trabalho da Polícia Federal, tão essencial à democracia brasileira, seja convertido em louros à própria Polícia Federal, e não a um ou outro ator. Ilustram isso os casos de atores que atuaram em operações com grande repercussão nacional e, posteriormente, são alçados a cargos eletivos mobilizando em suas campanhas eleitorais as revelações das operações como um trunfo político. Existem também os atores indicados para ocupar posições políticas nas burocracias estaduais e nacionais, alavancados pelo capital político da corporação ou com um trajeto construído junto ao mundo político a partir de múltiplas cessões ao longo dos anos (Pilau, 2024). Por isso, podemos situar como um segundo desafio à corporação repensar os mecanismos de retenção ou conversão de sua legitimidade em reforço à sua posição como uma polícia de Estado e republicana, para que a instituição e suas operações não sirvam como uma espécie de “trampolim político” para projetos políticos pessoais.

O terceiro desafio diz respeito à atuação da Polícia Federal no combate à corrupção e seus entraves. Mesmo com a priorização operacional no início dos anos 2010, cuja diretriz foi a investigação de crimes de desvio de recursos públicos, o processo de mudança que possibilitou maior atuação nesse sentido e estruturou sua operacionalidade na instituição é recente. Entretanto, o enfrentamento à corrupção nunca foi ausente na Polícia Federal, pois no início dos anos 2000 o foco era o combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Após esse período, via investigações de crimes de desvio de recursos públicos, a abordagem anticorrupção foi direta. O que ocorreu foi um processo de aprendizagem institucional que se transferiu de um crime para outro, pois, em meio às práticas das organizações criminosas, encontra-se a corrupção, mas também o tráfico de drogas, o terrorismo e afins. Por isso, podemos situar que o paradigma de enfrentamento à corrupção na Polícia Federal não mudou necessariamente com uma fase substituindo a outra, mas somando umas às outras, inegavelmente incremental (Fagundes, 2022). A conjuntura atual, influenciada pelos desafios anteriores, tem demonstrado que a atuação da Polícia Federal no combate à corrupção independe de decisão institucional, mas antes está diretamente ligada aos interesses das instituições do sistema de justiça, a uma agenda anticorrupção, à interferência do sistema político, ao efetivo com expertise para investigação, dentre outros fatores. Para os próximos anos, acreditamos que a instituição precisará repensar métodos para que sua atuação no “combate à corrupção” se mantenha sistemática e sempre pautada pela produção da prova.

Um quarto desafio está na atuação da Polícia Federal no combate aos crimes ambientais, tema que hoje tem repercussão nacional e internacional. A atuação da Polícia Federal no combate aos crimes ambientais tem aproximadamente vinte anos. Mais precisamente, em 2003 o Regimento Interno da instituição aprovava a implementação das Delegacias Especializadas na Repressão dos Crimes contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico (DELEMAPHs). Tal processo de implementação foi custoso, enfrentou resistências internas e também a complexidade da relação entre os sistemas político e financeiro e seus interesses. De lá para cá, a Polícia Federal se articulou com outras forças de segurança do Estado na Amazônia Legal para combater o desmatamento, o garimpo ilegal e mais recentemente organizações criminosas[6], com uma série de desafios na região, como ausência de estrutura física e de recursos humanos, como demonstrou o relatório Governança e capacidades institucionais da segurança pública na Amazônia[7], publicado pelo FBSP. Em todo o caso, apesar dos desafios apresentados e que ainda se apresentarão à instituição nessa área de atuação, a Polícia Federal demonstra que a temática vem ganhando destaque dentro da corporação, uma vez que em 2023 houve a criação da Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente[8].

Como quinto e último desafio, ponderamos a necessidade de a instituição sustentar práticas de uma polícia de excelência. As solicitações de federalização de casos ao longo dos anos por parte de atores da justiça e da segurança pública são um exemplo de que a imagem da corporação está atrelada a esse tipo de atuação. No último domingo (24), a Polícia Federal realizou a prisão de alguns suspeitos de articular intelectualmente o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes[9]. Em âmbito estadual, a investigação não avançou por longos seis anos. Consideramos que a solicitação de federalização em casos como esse demonstra que tanto a sociedade quanto o próprio sistema de justiça depositam expectativa na capacidade institucional da Polícia Federal na condução da investigação policial. Nesse ponto, a instituição é reconhecida ao atuar em casos que as polícias estaduais, embora tenham a competência, não resolvem por diversos motivos, dentre eles o envolvimento dos atores com o sistema político local. A resposta da Polícia Federal até aqui tem reforçado tal imagem, entretanto sua manutenção constitui-se em desafio institucional significativo, principalmente após os inúmeros casos de tentativa de interferência política por mandatários do governo federal na instituição, como veiculado em diversos meios de comunicação[10].

Assim, acreditamos que existe um aprendizado institucional e processos sociopolíticos que já permitiram e que continuarão permitindo o aperfeiçoamento da Polícia Federal como uma polícia de Estado, com a superação dos desafios acima elencados e de tantos outros que ainda surgirão nas próximas décadas.

Referências bibliográficas
FAGUNDES, Andréa Lucas. A polícia federal e o combate à corrupção: transformação discursiva e mudança institucional endógena. Tese (Doutorado) –  Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, 2022.
PILAU, Lucas e Silva Batista. O poder político na Polícia Federal: entre a burocracia estatal e a política partidária (2002-2022). Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2024.
[1] https://fontesegura.forumseguranca.org.br/o-melhor-dos-dois-mundos-a-policia-federal-entre-autonomia-e-politica-2/
[2] https://fontesegura.forumseguranca.org.br/as-adidancias-na-pf-entre-articulacao-internacional-e-recurso-de-poder/
[3] https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-politica-da-policia-federal-o-que-ha-de-novo/
[4] https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-resistencia-institucional-da-policia-federal/
[5] https://fontesegura.forumseguranca.org.br/mudanca-endogena-e-atuacao-da-policia-federal-no-combate-a-corrupcao/
[6] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/cartografias-das-violencias-na-regiao-amazonica-sintese-dos-dados.pdf
[7] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/09/relatorio-governanca-capacidades.pdf
[8] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/03/diretor-da-pf-ve-retrocesso-em-fiscalizacao-ambiental-e-diz-que-queda-do-desmate-nao-sera-imediata.shtml
[9] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/03/pf-faz-operacao-neste-domingo-para-prender-suspeitos-de-mandar-matar-marielle.shtml
[10] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/policia-federal-passou-por-maior-crise-de-sua-historia-no-governo-bolsonaro.shtml

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