Múltiplas Vozes

A política da Polícia Federal: o que há de novo?

A relação entre PF e política tomou aspectos de uma simbiose entre as elites policiais da instituição e a presidência da República, em que, numa cruzada pela sobrevivência institucional, um grupo se torna vital para a sobrevivência do outro

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Lucas e Silva Batista Pilau

Doutorando em Ciência Política na UFRGS. Membro do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (NEJUP/UFRGS)

Em meu último texto para o Fonte Segura, “O melhor dos dois mundos: a Polícia Federal entre autonomia e política”, publicado em abril de 2021, na Edição n.º 86, avaliei que os caminhos para se chegar ao poder dentro da Polícia Federal são diversos. Naquele momento,  afirmei que as vias de ascensão têm variado nos últimos anos entre a mobilização da “técnica” (enunciado que procura legitimar a prática jurídica dos delegados) e das conexões políticas, principalmente no que se refere à circulação de delegados na burocracia do Estado brasileiro. Finalizei aquele texto apontando para os perigos das relações do órgão com a política. Contudo, um fato não pode ser negado: as relações da Polícia Federal com as elites políticas são constitutivas de sua construção corporativa.

Nesse ponto, para além do padrão de recrutamento dos Diretores-Gerais (escolhidos diretamente pelo presidente da República), um bom termômetro dessas relações entre a PF e as elites políticas no regime democrático são os trajetos políticos desses atores antes e depois da ocupação do cargo máximo da instituição. A Tabela 1 evidencia que, sem contar o atual DG, sobre o qual já demarquei anteriormente suas conexões com a política, pelo menos outros sete Diretores-Gerais estiveram vinculados a postos políticos. Esses vínculos variam de candidaturas a cargos eletivos, como nos casos de Romeu Tuma, Vicente Chelotti e João Batista Campelo à ocupação de cargos de confiança, como fizeram Paulo Lacerda, Luiz Fernando Corrêa, Rogério Galloro e Rolando Alexandre.

Tabela 1: Trajetos políticos dos Diretores-Gerais da PF

Nome Direção-Geral Cargos políticos
Romeu Tuma 1986-1992 Senador da República (1995-2003/2003-2010)
Vicente Chelotti 1995-1999 Deputado Federal (2006-2007)
João Batista Campelo 1999-1999 Candidato a cargos eletivos (2002, 2012)
Paulo Lacerda 2003-2007 Assessor Parlamentar no Senado (1997-2002); diretor-geral da ABIN (2007-2008)
Luiz Fernando Corrêa 2007-2011 Secretário Nacional de Segurança Pública (2003-2007)
Rogério Galloro 2018-2019 Secretário Nacional de Justiça (2017-2018)
Rolando Alexandre de Souza 2020-2021 Secretário de Planejamento e Gestão na ABIN (2019-2020)

Fonte: elaborado pelo autor.

Porém, o nexo entre o órgão e a política apresenta variações. Com a deflagração da Lava Jato, em 2014, as bandeiras da “técnica” e da autonomia impulsionaram um discurso que defendia situar a PF fora do tabuleiro político, a fim de evitar interferências em seu trabalho. Uma ilustração dessa posição encontra-se no livro Crime.gov, escrito por dois delegados federais. Em determinado momento, os autores avaliam que “[…] o ideal seria remover do Poder Executivo a atribuição de nomear um diretor-geral”, isso porque “[…] a escolha de um procurador-geral da República ou de um diretor-geral da PF passou a equivaler, em última análise, a definir um possível futuro algoz, um potencial adversário institucional”. Como demonstra a pesquisa Escuta dos Policiais de Segurança Pública do Brasil, publicada recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o quesito “interferência política” de fato encontra reverberação entre os policiais federais, sendo considerado por mais de 90% dos entrevistados como um fator importante entre as dificuldades encontradas no trabalho policial.

Com maior ou menor força em determinadas conjunturas, esse pêndulo – entre proximidade e afastamento da política – pode ser situado como um padrão dentro da instituição. Mesmo com posições convergentes e divergentes do envolvimento das elites policiais com a política, a Polícia Federal, nas últimas duas décadas, parece ter conseguido acomodar internamente diferentes variações da ideologia profissional dos delegados no regime democrático brasileiro. Nesse ponto, mesmo que atores com amplos vínculos políticos assumissem o comando do órgão, a ideia de autonomia e a defesa corporativa dos interesses da categoria permaneceram como uma pauta central de suas gestões.

Nove meses depois daquele artigo de abril, retorno para avaliar um fenômeno que tem sido nomeado como “interferência política”. Investigações jornalísticas refinadas, como aquela publicada pelo jornalista Allan de Abreu na revista Piauí, vêm dando o tom do que ocorre dentro da Polícia Federal nesse momento sob a gestão do diretor-geral Paulo Maiurino. Entre uma declaração do atual DG pedindo o fim do “segredismo” – se referindo ao sigilo das investigações por parte dos delegados – e alterações nos padrões de recrutamento nas Superintendências Regionais, a situação atual da PF parece exigir um novo esforço interpretativo sobre o que se passa atualmente na instituição. Se a conexão entre as elites do órgão e a política são constitutivas, o que há de novo? Mesmo que já tenham ocorrido outras vezes, o que nesse momento sustenta a legitimidade de um diretor-geral apontado como subserviente ao projeto político do presidente da República?

Para compreender melhor essa nova política da Polícia Federal, penso que três aspectos precisam ser levados em conta. Primeiro, temos uma situação inédita no fluxo de ascensão e sustentação de um diretor-geral: desde a redemocratização, é a primeira vez que um delegado de Polícia Federal ocupa o cargo de ministro da Justiça. Se os diretores-gerais têm permanecido no cargo por mais tempo que os ministros da Justiça, o que demonstra que o custo político para trocar um DG é maior do que para trocar o ministro, fica a dúvida sobre os impactos de se ter um delegado federal no primeiro escalão do governo federal. Isso porque o órgão é subordinado ao MJ e a escolha de sua direção-geral sempre contou com a influência do ministro que ocupa a pasta. Assim, a legitimidade “de cima”, vinda de um ministro da Justiça que conhece a corporação por dentro, pode alterar as relações de forças existentes, denegando ou legitimando qualquer projeto político implementado no órgão e, nesse último caso, tensionando menos para a queda de um diretor-geral.

Segundo, penso que não é possível pensar a nova política da PF sem pensar na legitimidade vinda “de baixo”. Embora a ideia de “interferência política” remeta no imaginário social a uma situação em que a PF esteja puramente sob o comando do presidente da República, precisamos levar em conta a adesão de uma parcela de delegados ao projeto de Bolsonaro. O poder vem de baixo, já dizia Michel Foucault. Nesse sentido, precisamos fazer duas perguntas: se há pouco tempo a queda de um diretor-geral podia ser causada por suas declarações em uma entrevista, quem sustenta a nova política em curso dentro da instituição? E o que esses policiais federais pensam ser o papel político da PF? As respostas a esses questionamentos poderiam nos ajudar a mapear o grupo ascendente e seus interesses, na busca por uma explicação dos novos padrões impostos à instituição recentemente.

Um terceiro aspecto, mais a título de hipótese, parece ser a ausência de um papel político definido para a PF neste momento. Entre a década de 1990 e a virada do século, a PF ganhou notoriedade ao atuar no combate ao tráfico internacional de drogas. Como sabemos, os investimentos corporativos dos governos Lula (2003-2010) propiciaram uma nova leitura de suas atribuições, o que fez com que a instituição acumulasse ampla legitimidade ao se dedicar a investigações de “combate à corrupção”. Afinal, qual ideologia profissional é a dominante na PF hoje? Ao contrário das últimas duas décadas, se tornou mais difícil responder a essa pergunta. Essa dúvida parece se agravar ainda mais pela visibilidade que a PF ganhou recentemente ao usar com mais intensidade a revogada Lei de Segurança Nacional e ao exonerar delegados que criticam o projeto político do governo. A linha que separa os interesses da PF e do governo parece ser cada vez mais tênue.

O que há de novo na política da Polícia Federal, afinal? Primeiro, podemos responder essa pergunta afirmando que as conexões entre as elites policiais e a política não são novidade. Essas são constitutivas da corporação. O que parece haver de novo é a intensidade desse vínculo, sendo três os aspectos que podem estar na base do projeto político vigente: a) a aprovação “de cima”, ao se ter um delegado federal à frente do Ministério da Justiça; b) aprovação “de baixo”, com policiais federais engajados na visão de mundo do presidente da República; c) na ausência de um papel político definido e de demarcações entre os interesses da corporação e as do governo. Assim, parece que a relação entre PF e política tomou aspectos de uma simbiose entre as elites policiais da instituição e a presidência da República, em que, numa cruzada pela sobrevivência institucional, um grupo se torna vital para a sobrevivência do outro. De qualquer forma, se algo há de verdade nesse diagnóstico, é preciso lembrar que ele não é estático. O próprio Michel Foucault afirmou: “onde há poder, há resistência”.

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