Guaracy Mingardi
Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Como já discutimos em outros artigos, a situação do centro paulistano não é boa. A Cracolândia vai bem, obrigado. Os pontos de tráfico espalhados pela região, idem. E o roubo e o furto de celulares são o assunto principal de quem circula pela região. É comum sermos alertados por pessoas, estranhas ou conhecidas, quando atendemos um celular na rua. O medo do roubo e/ou furto agora faz parte do cotidiano dos frequentadores ou moradores da região. E cada vez mais aparecem vozes alarmistas dizendo que quem manda é o crime, que o PCC manda aqui da mesma forma que faz em algumas favelas da periferia. Exagero, certo? Talvez, mas nem tanto.
Os eventos deste ano de 2023 mostraram que alguma coisa está mudando na segurança das regiões centrais da cidade – e não é para melhor. Mesmo as estatísticas oficiais que, dependendo do ângulo que são apresentadas podem mascarar a realidade, mostram um aumento dos furtos e roubos. Mesmo não contando com o último semestre, no qual esses crimes disparam, os dados oficiais dão margem ao pessimismo. Aliás, como mencionou um segurança de hotel entrevistado, ladrão também tem mãe, e dá presentes no Natal. Portanto tem de arrecadar mais.
Além desses indicadores de alerta, existe outro que sinaliza mais fortemente os tempos difíceis que temos à frente. Ao que tudo indica não apenas a população ordeira perdeu a confiança no aparelho repressivo do Estado. Outros grupos também. Não apenas criminosos profissionais, mas também ladrões e traficantes. Os “noias” e arruaceiros também.
No caso dos criminosos profissionais, isso é o esperado. Quando conseguem ficar impunes por algum tempo, cresce sua confiança, e nosso sistema de segurança não tem dado conta de impedi-los, menos ainda de puni-los pelos seus crimes. E esqueçam a velha argumentação de que “a polícia prende e a justiça solta”. Ouço isso desde minha passagem pela Polícia Civil nos anos 1980. Em alguns casos, pode ser que ocorra indulgência indevida por parte dos juízes, mas não é somente aí que a coisa pega. Provas insuficientes levam à soltura de alguns já na audiência de custódia. O caso mais evidente é o dos receptadores, mesmo que presos num local onde estão estocados diversos celulares roubados acabem soltos porque um deles admite a culpa, excluindo os outros das acusações. Normalmente, quem assume esse papel é aquele com menos passagens na justiça, portanto com menor probabilidade de uma longa sentença ou mesmo de permanecer em cana. Os traficantes, por sua vez, têm como norma esconder a mercadoria em fresta na parede, bueiros etc. Assim, quando pegos, não estão exatamente com a “mão na massa”. Têm consigo apenas um ou dois papelotes, pinos, pedras, seja lá o que for. E alegam que são usuários. Se a polícia não provar que têm inúmeras passagens, vão sair livres, leves e soltos. Essa impunidade legal de médio prazo é apenas um fator da falta de respeito pela lei; outra provém de confiança que não serão pegos por inoperância ou corrupção policial, o que já discutimos em outros artigos.
Nem só os criminosos, porém, perderam o respeito. Grupos constituídos de pessoas com pouco a perder também. Os “noias”, por exemplo. No início do ano invadiram uma drogaria e um mercado próximos à Cracolândia como forma de protesto contra uma ação, atabalhoada, da polícia contra eles. Não foi a primeira nem a última vez que usaram essa tática. Nos últimos dias, porém, o controle estatal foi posto em dúvida mais duas vezes, e por grupos distintos. Em uma delas, um grupo de entregadores, aparentemente todos motoqueiros, resolveu apedrejar uma loja da rede McDonald’s. O motivo alegado é que um deles teria sido maltratado nesse estabelecimento por atrasar com as entregas. Seja ou não verdade, o caso teria sido presenciado, segundo a imprensa, por dois policiais que não intervieram, só assistiram. Sua alegação é que não tinham equipamento para controle de distúrbios. Pode até ser, mas, segundo todas as fontes, foram seis ou sete os motoboys que atacaram a lanchonete. E dois policiais que, se realmente quisessem, teriam como impedi-los, talvez até prendendo um ou dois.
O segundo caso foi do ataque ao Bar Brahma da esquina da São João com a Ipiranga. Dessa vez os vândalos seriam ladrões, que após um colega apanhar de uma vítima em frente ao bar, teriam partido para a vingança. Caso filmado por mais de um espectador, e que circula nas redes. Ou seja, criminosos profissionais teriam partido para uma represália contra o comércio, num dos locais mais policiados da cidade. Outra ação, mais no início do ano, foi a de apedrejamento de uma dupla de PMs que tentavam prender um ladrão de celular, ao que se sabe. E que tiveram de recuar para o veículo, de armas na mão, deixando o criminoso impune.
Essas três situações distintas mostram que os órgãos de repressão perdem dia a dia o controle sobre o Centro de São Paulo, o que significa que a população se sente abandonada. Cada vez mais transformando seu celular em um telefone fixo. Para ser usado em casa ou em um local fechado.
E a solução mais recente das autoridades foi a criação de uma nova Operação Delegada, em que a prefeitura paga hora extra para policiais militares patrulharem determinadas áreas. O que já foi feito várias vezes antes, com efeito apenas temporário. Vai dar um refresco no fim de ano, mas, se tudo seguir no mesmo rumo, só fará os ladrões mudarem umas quadras para lá ou para cá por um tempo. E já que é impossível ter uma dupla de PMs em cada esquina, uma política de longo prazo implica investir na investigação, ou seja, na Polícia Civil, e no médio prazo cobrar resultados.