Patrulhas Maria da Penha no RS: avanços e desafios dos dez anos da implementação desta política pública pioneira de prevenção à violência de gênero
As Patrulhas se expandiram para vários Estados. Esta poderá vir a se tornar uma política pública, por meio de proposição legislativa em tramitação no Senado que visa à instituição nacional do programa
Marlene Inês Spaniol
Doutora em Ciências Sociais pela PUCRS, oficial da reserva remunerada da Brigada Militar/RS, conselheira do FBSP, pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC), professora do PPGSeg da UFRGS
Carlos Roberto Guimarães Rodrigues
Doutorando em Política Públicas pela UFRGS, mestre em Segurança Cidadã pelo IFCH da UFRGS, especialista em Segurança Pública e Cidadania pelo IFCH da UFRGS, coronel da reserva remunerada da Brigada Militar/RS; professor de pós-graduação da UFGD
Lígia Mori Madeira*
Doutora em Sociologia pela UFRGS, professora do Departamento de Ciência Política, do PPG em Políticas Públicas e do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS, coordenadora do Núcleo de Estudos em Direitos, Instituições Judiciais e Políticas Públicas (NEDIPP-UFRGS)
No transcorrer de 2012, a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul realizou seminário temático que tratou da necessidade de enfrentamento à violência contra a mulher. Como resultado dos debates, foi criada a política de atendimento às ocorrências envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica, intitulada “Rede de Atendimento da Segurança Pública para enfrentar a violência doméstica e familiar no RS”, cujo objetivo principal era prevenir e combater tal tipo de violência, procurar atender de maneira digna as mulheres já vitimadas e atuar para que elas não voltassem a sofrer novas violências.
Em consequência da implementação dessa política de atendimento nos órgãos que compõem a SSP/RS, houve reforço na formação dos policiais civis que atuam nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher, enquanto que nos demais órgãos foram implementadas as seguintes políticas públicas:
– Na sede da SSP/RS foi criado o “Observatório de Violência contra a Mulher” com o objetivo de realizar os registros e levantar dados para formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas incluídas em programas como a Rede Lilás, por exemplo;
– No IGP foi criada a “Sala Lilás”, pensada para ser um espaço acolhedor, privativo e diferenciado dos demais locais de atendimento com o intuito de humanizá-lo às mulheres que necessitassem de exames periciais por conta das agressões sofridas;
– Na SUSEPE criou-se o programa “Metendo a colher”, que tinha como objetivo principal a conscientização dos agressores presos em decorrência de enquadramento na Lei Maria da Penha para que não reincidissem nesse delito, respeitassem as mulheres, dentre outros enfoques; e
– Na Brigada Militar (BM/RS) foram criadas as “Patrulhas Maria da Penha (PMP)”, partindo-se da ideia de que era necessário abrir novos caminhos e horizontes ante as funções constitucionais das PMs, que consistem na atuação na prevenção dos delitos ou na prisão dos infratores no pós-delito. Buscou-se atendimento mais mais completo e continuado e, também, pela necessidade de uma atuação mais eficiente e em rede às mulheres vítimas de violência e, após várias serem assassinadas, mesmo com o deferimento das MPUs pelo Judiciário, inserindo desta forma a BM/RS também no rol de atendimento à violência doméstica e familiar da rede criada pela SSP/RS.
Desta maneira, criou-se um “ciclo completo” na rede de atendimento para o enfrentamento à violência doméstica e familiar envolvendo todos os órgãos que integram a SSP/RS, conforme fluxo de trabalho demonstrado na Figura 1.
A criação, a capacitação dos PMs e as atividades das Patrulhas Maria da Penha/RS
Para a criação das PMP partiu-se dos exemplos de atuação policial em outras patrulhas ativas na instituição, como a escolar e a ambiental, por exemplo. A atividade da PMP se volta à fiscalização do cumprimento de medidas protetivas determinadas judicialmente. Para esse fim são exigidos treinamento específico e perfil adequado dos PMs para se possa realizar o acolhimento necessário a todas as vítimas.
A PMP, com viatura identificada, comparece à residência da vítima para fiscalizar se a medida protetiva está sendo cumprida, esclarece dúvidas e realiza encaminhamentos conforme cada caso. Se necessário, visita o agressor para orientá-lo sobre o cumprimento da medida e suas consequências. Após cada atendimento, é elaborado um relatório circunstanciado. Com isso, os casos mais graves são identificados e remetidos imediatamente à delegacia para que sejam juntados ao inquérito policial.
O início das atividades da PMP se deu no dia 20 de outubro de 2012, por meio da Ordem de Serviço nº 1696/P3-O/CPC/2012, do Comando de Policiamento da Capital (CPC) com equipes iniciais de atuação e coordenação a cargo do comando do 19º BPM, na zona leste de Porto Alegre, sendo batizada com o nome de “Patrulha Maria da Penha”, assim como já havia acontecido com a Lei nº 11.340/2006, em uma homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica que, após anos de tentativa de encerrar a impunidade do seu agressor, tornou-se símbolo nacional da luta contra esse tipo de violência.
No ano de 2014, por intermédio da Portaria nº 530.A/EMBM/2014, deu-se a criação da Coordenação-Geral das PMP, ligada diretamente ao Estado Maior da BM/RS. A atividade das Patrulhas foi regulamentada inicialmente através da Nota de Instrução Operacional nº 043/2016, do Comando da Corporação. Houve atualização em 2023, pela Nota de Instrução nº 2.23/EMBM/2023.
A documentação institucional que passou a este emprego prevê critérios para instalação e composição das Patrulhas: a) Serão instaladas nos municípios onde o índice de violência doméstica e familiar recomendem a adesão ao Programa; b) O pedido de instalação de PMP será fundamentado e encaminhado ao Comando da Brigada Militar para apreciação. c) A PMP será composta por no mínimo dois policiais militares, sendo um deles preferencialmente do sexo feminino; d) Serão recrutados PMs que tenham vocação e interesse no desenvolvimento da missão atribuída à PMP.
A equipe de atuação das Patrulhas é composta por dois ou três PMs, treinados em curso específico para tal fim, sendo que um dos integrantes deve preferentemente ser do sexo feminino para que a vítima se sinta mais acolhida e à vontade para relatar os fatos.
Durante o período em que a mulher tiver a medida protetiva de urgência, as visitas só serão interrompidas se a mulher assim o desejar ou não necessitar mais do atendimento da Patrulha Maria da Penha, informando à Patrulha o motivo da recusa das visitas. Nessa situação, a PMP expede uma certidão de término de acompanhamento ou certidão de recusa de atendimento, conforme a situação.
Para a execução do Programa, hoje a BM/RS conta com mais de 2.664 PMs capacitados com curso de, no mínimo, 30 horas, sendo que, destes, 250 estão em atuação, compondo 62 Patrulhas no Estado do RS. As PMP, ao completarem dez anos de atuação, já receberam reconhecimento estadual, nacional e internacional e foram replicadas em vários outros estados da federação.
Considerando a necessidade de curso específico para atuação nas PMP, em 2017 foi implementado o Curso de Multiplicador Nacional das PMP, pensado e organizado a partir da Senasp, com duração de 60 horas. A primeira edição se deu no estado do Rio Grande do Sul, habilitando 21 PMs como multiplicadores da atividade, devendo ser replicado em todos os estados da federação que demonstrarem interesse.
O curso de capacitação dos agentes das PMP é de 30 horas-aula e, dentre as diversas disciplinas ministradas, destacam-se: a forma adequada de acolher a mulher vítima de violência de gênero, maneiras de estabelecer uma relação de confiança, além de orientá-la sobre onde e qual o momento adequado de buscar ajuda para que seja a protagonista da solução do seu problema. Além desses temas, são tratados outros, tais como: polícia comunitária, registro das estatísticas de violência doméstica e familiar contra a mulher, além de aspectos gerais sobre a violência de gênero e da Lei Maria da Penha.
Em 2023 foi adotado o Procedimento Operacional Padrão (POP) com o objetivo de uniformizar procedimentos por ocasião das visitas da PMP, consistindo nas seguintes ações: 1. Ao chegar ao local da visita: a) Verificar as condições de segurança do local e no entorno; b) Identificar-se como PMP; c) Averiguar se a MPU está sendo cumprida pelo agressor; d) Esclarecer dúvidas e fornecer informações adequadas à vítima e a seus familiares; e) Informar ao agressor, caso ainda não tenha sido intimado da MPU, as consequências do não cumprimento da medida, informando o fato na respectiva certidão; f) Efetuar a prisão do agressor quando flagrado descumprindo a MPU, coletando provas e apreendendo instrumentos do crime, e apresentar à DEAM; g) Confeccionar BOCOP quando a vítima informar situação que caracterize descumprimento de MPU e transmitir com brevidade via BMMob ao cartório.
Trata-se de uma experiência que se ampliou muito nestes dez anos de implementação, uma vez que no primeiro ano restringiu-se aos quatro territórios de paz instalados em Porto Alegre em áreas com altas taxas de homicídios (Bairros: Morro Santa Teresa, Lomba do Pinheiro, Rubem Berta e Restinga), foi ampliada para 27 municípios gaúchos nos cinco primeiros anos de atuação. Atualmente as PMP estão instaladas em todos os seis Batalhões da PM de POA (1º, 9º, 11º, 19º, 20º e 21º BPM) e sua atuação foi ampliada para 114 municípios do RS no final do décimo ano de atuação.
A ampliação, o alcance e os números das Patrulhas Maria da Penha no RS
A inserção das PMP na rede de atendimento e o aceite das vítimas deram grande visibilidade à atuação das PMP, tanto que ao final do primeiro ano de atividades a SSP/RS foi premiada pela iniciativa com o “Prêmio Governarte – a arte do bom governo”, do BID, como uma iniciativa para empoderar as mulheres e fortalecer a erradicação da violência de gênero. A rede de atendimento da SSP/RS venceu na categoria “Governo Seguro: Prevenir o Crime e a Violência”, entre 29 países concorrentes da América Latina e do Caribe, como a primeira rede de atendimento de “ciclo completo” implantada no Brasil.
Em 2013, no ano seguinte ao seu lançamento, as PMP foram destaque na página da ONU no Brasil. Ficou evidenciada a sua forma de atuação, o uso de viaturas identificadas com logomarca da rede lilás, o treinamento específico dos PMs para o exercício dessa atividade e o trabalho que exercem no sentido de mostrar às vítimas alternativas às agressões sofridas e orientação aos agressores quanto às consequências do não cumprimento da MPU.
Em 2015, na linha de ampliação do alcance das PMP, houve uma proposição legislativa da senadora Gleisi Hoffman (PLS 547/2015, renumerado para PL nº 7.181/2017), propondo a instituição do Programa Patrulha Maria da Penha, prevendo a inserção do art. 22-A ao texto da Lei nº 11.340/2006 nos seguintes termos: “Art. 1º – A Lei Maria da Penha passa a vigorar acrescida do seguinte: art. 22-A – É instituído o Programa Patrulha Maria da Penha, destinado a conferir maior efetividade às MPUs previstas no art. 22. […]”. Em (…) de 2023 este PL foi aprovado pela CCJ e permanece aguardando votação do Senado.
Em 2017, as Patrulhas foram selecionadas por seu pioneirismo pelo FBSP como uma das dez melhores práticas inovadoras de enfrentamento à violência contra as mulheres. O Fórum havia selecionado experiências e boas práticas desenvolvidas pelos profissionais de segurança pública.
Outro aspecto que demonstra a repercussão e ampliação do trabalho das PMP no RS foi a visita de representantes das PMs de oito Estados da Federação, com o objetivo de conhecer a experiência para implementar iniciativas semelhantes em suas corporações. Dentre os Estados que enviaram policiais neste sentido estão SC, PR, ES, BA, MG, MG, MS, RO e BA.
A análise dos atendimentos das PMP de 2012 a 2023, conforme a Tabela 1, nos mostram que o número de visitas nestes dez anos de atuação totalizou 320.363, o que equivale a mais de 150 visitas por dia, tomando-se por base o ano de 2023, sendo que este aumento se deu na medida em que se ampliou o número de municípios atendidos. O mesmo acréscimo pode ser percebido nos demais indicadores ao longo desses dez anos de atuação: 156.977 vítimas cadastradas; 18.503 medidas protetivas revogadas; expedição de 62.102 certidões negativas de endereço; de 9.931 certidões de violação de medidas protetivas; de 10.284 certidões de vítimas em situação de vulnerabilidade; 13.776 recusas de acompanhamento das PMP e 1.644 prisões decorrentes de descumprimentos de MPUs.
Ao analisarmos os dados quantitativos crescentes nos dez anos pesquisados, tem-se a impressão do crescimento do número de casos de violência doméstica e familiar após a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, mas o que ocorre é que só a partir de então passou a ser dar mais visibilidade ao fenômeno, dando essa falsa impressão de aumento, uma vez que esse tipo de violência sempre existiu, além do fato de que as mulheres passaram a se sentir mais empoderadas, razão pela qual também denunciam mais seus agressores.
Da análise dos dados da Tabela 2 depreende-se que dos totais anuais de cada delito, percebe-se uma redução gradativa nos crimes de ameaça (de menos 25,87%) e lesão corporal (de menos 26,73%), diminuição que não se repetiu nos delitos mais graves de estupros (aumento de 45,02%) e feminicídios consumados e tentados, que se mantiveram praticamente no mesmo percentual. Porém, mesmo que alguns delitos tenham diminuído, o número total registrado no período mapeado, conforme a Tabela 2, foi de 753.815 delitos, números muito elevados e que justificam a implementação desta política pública e de todo trabalho da rede de enfrentamento à violência doméstica criada no Estado do RS após o ano de 2012.
O aumento dos casos de estupros e a não diminuição dos feminicídios revelam que somente a PMP não consegue incidir na redução destes delitos, sendo necessária uma intervenção intersetorial, abrangendo as políticas públicas de educação, assistência social e saúde, entre outras, para o desenvolvimento de ações de prevenção e educação na perspectiva de igualdade de gênero para instaurar novos padrões de sociabilidade não violenta.
Os desafios ainda não alcançados pelas Patrulhas Maria da Penha no RS
Conclui-se que as PMP da Brigada Militar se expandiram muito desde a sua criação e implementação em 2012, em face da grande aceitação das vítimas, do alto número de atendimentos e das centenas de solicitações de ampliação para novos municípios do Estado.
Como fator potencializador desta política pública, temos que as Patrulhas já se expandiram para vários Estados. Esta poderá vir a se tornar uma política pública, incorporada à Lei Maria da Penha, através de proposição legislativa em tramitação no Senado Federal que visa à instituição nacional do “Programa Patrulha Maria da Penha”.
Uma das limitações da PMP no RS é que as visitas são feitas somente às vítimas e não possuem intervenção com os homens. A SSP da Bahia, por exemplo, que replicou o modelo das PMP/RS, estendeu o programa do RS com a “patrulha para homens” e lá há uma equipe que visita as vítimas e outra que visita os agressores, o que é inovador e poderia ser aplicado também no RS.
A implementação de políticas públicas consistentes, assim como a sua integral manutenção e continuidade fidedigna nas gestões seguintes se mostrou vulnerável com a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres, que criou a Rede Lilás, nos primeiros atos da gestão governamental seguinte, fato que contribuiu para a fragilização das políticas estaduais de enfrentamento à violência contra as mulheres. A falta de um protocolo de atendimento, orientando regras institucionais únicas, a ser seguido por todos os profissionais envolvidos, independente de governos, é uma questão a ser corrigida, pois assim como está, tudo fica a critério do perfil profissional de quem está à frente da gestão naquele momento.
Outro desafio evidenciado é a necessidade de capacitação e de engajamento de toda a rede de atendimento à mulher e da formação continuada e permanente de todos os policiais para atuarem em situações de violência doméstica, não somente os que atuam na PMP, para que os atendimentos sejam mais humanizados, acolhedores e que as mulheres sejam encaminhadas à rede de serviços para que possam receber orientações e apoio/recursos necessários para seu fortalecimento na superação das situações de violência que se encontram.

