Múltiplas Vozes 03/09/2025

Para além do risco: a singularização como um modelo de classificação prisional cidadã

O modelo possibilita relacionar as habilidades, potencialidades e necessidades da pessoa privada de liberdade aos serviços, à rede de políticas sociais, à comunidade do entorno e aos espaços do estabelecimento prisional

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Simone Schuck da Silva

Doutora em Direito pela Unisinos. Pesquisadora do LabGEPEN/UnB

Para o cumprimento da pena privativa de liberdade, a Lei de Execução Penal (LEP) brasileira determina que a pessoa condenada passe por um processo de classificação. A norma não detalha os objetivos desse procedimento, mas define algumas diretrizes para classificar a pessoa em poucos artigos e a partir do enfoque nos antecedentes e em uma investigação da “personalidade” do indivíduo. Assim, pela classificação estruturada na LEP, a “personalidade” do indivíduo é considerada a principal causa do crime e a pena como uma forma de “tratar” essa “personalidade desviante” a partir da intervenção de especialistas.

No entanto, a Exposição de Motivos da LEP, documento oficial que procura justificar a norma para o debate legislativo, é mais confusa, pois ela também afirma a classificação como um desdobramento dos princípios da pessoalidade e da proporcionalidade da pena, os quais visam a um processo de responsabilização pelo ato cometido. Isso significa que, por vezes, a Exposição de Motivos defende que o crime não é um “reflexo natural e necessário” da individualidade do autor, mas sim um ato de múltiplas causas pelo qual ele deve ser responsabilizado.

As diferentes perspectivas presentes na Exposição de Motivos da LEP expressam o seu contexto histórico de debate sobre a função da execução penal no direito brasileiro. Poucos anos mais tarde, com a promulgação da atual Constituição Federal em 1988, os princípios da pessoalidade e da proporcionalidade da pena se tornaram meios constitucionais de garantir direitos durante a execução penal. Assim, a Constituição de 1988 definiu a execução penal no Brasil como forma de responsabilização de uma pessoa pelo cometimento de um crime e não como um meio de tratamento para uma “personalidade delinquente”.

Cabe destacar que a Constituição de 1988 estabelece uma nova configuração jurídica no Brasil, em que a pessoa humana é o próprio fundamento do direito brasileiro. Isso é identificável pela determinação de direitos fundamentais, como os direitos à vida, à liberdade e à igualdade, e de direitos sociais, como os direitos à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho e ao lazer. Desse modo, a Constituição institui o ordenamento jurídico não apenas como um regime de normas relacionado a comportamentos, bens, relações e capacidades jurídicas, mas também como um espaço político de gestão social do poder e da autonomia individual.

Em outras palavras, a Constituição de 1988 fundamenta o direito brasileiro no exercício da cidadania, em que a violação de normas, podemos dizer, demanda um processo de responsabilização e não de exclusão da vida em sociedade ou de intervenção em uma suposta “personalidade criminosa” da pessoa humana. Por isso, a Constituição Federal de 1988, fruto de um processo histórico de transformação do direito no contexto interno e internacional, provoca a elaboração de novas diretrizes para o processo de classificação das pessoas no cumprimento da pena privativa de liberdade, tendo em vista que as determinações da LEP não expressam o paradigma de cidadania estabelecido pela norma constitucional.

Desafios e obstáculos atuais para uma classificação cidadã

Em geral, os estados brasileiros não elaboraram metodologias de classificação com base nas diretrizes determinadas pela LEP, tampouco dispõem de comissões técnicas de classificação, conforme indica a norma. Contudo, mesmo que utilizassem alguma metodologia fundamentada nas orientações da LEP, a classificação ainda descumpriria as determinações de promoção da cidadania previstas na Constituição de 1988.

Os procedimentos de classificação atualmente realizados no país ainda focam em uma análise da “personalidade” do indivíduo e de uma aferição de eventuais riscos que a pessoa oferece durante o cumprimento de pena. Em outros termos, essas metodologias buscam identificar o histórico criminal da pessoa, sua ligação com grupos sociais faccionados, o grau de violência do crime cometido e sua respectiva repercussão social.

A ausência de um modelo nacional de classificação é mais um componente de um déficit geral na gestão das políticas penais, as quais frequentemente não são consideradas políticas públicas para regular ações do Estado na custódia e na estruturação de serviços penais, mas sim atividades de promoção da segurança pública. A ausência de modelos de governança, portanto, não é um problema apenas para o processo de classificação de pessoas privadas de liberdade, mas para a maior parte das políticas penais, que ainda são geridas pelos governos brasileiros a partir de uma lógica de segurança pública e não de garantia de direitos, conforme determina a Constituição Federal.

Outro desafio para a elaboração de uma metodologia de classificação nos termos constitucionais é a falta de diretrizes explícitas na microgestão da política. A constante ausência de parâmetros nacionais em uma política pública executada, em sua maior parte, pelos estados, faz com que as políticas penais sejam pautadas por programas governamentais pouco estruturados e sem aprofundamento nos problemas sociais. Além disso, essa falta de coordenação nacional das políticas penais abre espaço para atuações personalistas no âmbito da gestão pública, razão pela qual procedimentos fundamentais para a execução penal, como a classificação,tornam-se reféns das prioridades de gestores e da pluralidade dos cenários dos territórios, sem que, necessariamente, a promoção de direitos seja o foco do processo de responsabilização.

Além disso, um desafio para a promoção de uma metodologia consoante os termos da chamada Constituição Cidadã são as propostas de classificação baseadas na aplicação de instrumentos tecnológicos em procedimentos de alta complexidade social. No Brasil, novas propostas de classificação surgem, quase sempre, com base em modelos matemáticos de valoração e gestão do risco oferecido pela pessoa em cumprimento de pena, sem considerar o trabalho de acompanhamento por uma equipe multidisciplinar, capaz de contextualizar as diferentes questões sociais relacionadas ao ilícito penal cometido.

Dessa forma, sem que os direitos fundamentais e sociais sejam considerados na construção de modelos de classificação, ainda que a pena privativa de liberdade tenha por objetivo somente a restrição da liberdade, a tônica dos procedimentos de classificação aplicados no país é de privação de direitos. Isso porque, na vida em liberdade, o Estado oferta políticas públicas de educação, saúde, cultura, alimentação, trabalho, entre outras, cujo acesso é restringido pela custódia penal. Portanto, para minimizar esse efeito eminentemente dessocializador da prisão sobre o cotidiano das pessoas privadas de liberdade, no qual o exercício da cidadania é diretamente afetado, é fundamental que os procedimentos da execução penal como a classificação estejam baseados na verificação do oferecimento de políticas sociais nos estabelecimentos prisionais.

O modelo de singularização

Em 2014, a partir de uma consultoria realizada para o então Departamento Nacional de Políticas Penitenciárias (DEPEN) – atualmente alçado à Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) –, foi elaborado o modelo de singularização para o processo de classificação na execução penal. Em 2016, o modelo de singularização foi testado em um projeto piloto, mas sem que houvesse continuidade de sua aplicação. Após essa experiência, a metodologia de singularização passou a ser utilizada para o acesso a direitos por pessoas egressas do sistema prisional em alguns Escritórios Sociais do Brasil[1]. O modelo de singularização também foi testado, em partes, durante um mutirão carcerário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2000, no estado do Espírito Santo, fundamentando a elaboração de um protocolo qualificado para os procedimentos de soltura em estabelecimentos prisionais.

O modelo não trabalha com a ideia de risco e de reincidência como condições intrínsecas do indivíduo, mas considera que o cometimento de crimes envolve diversos fatores para além do autor em si. Ou seja, a singularização parte da concepção de que um comportamento criminal não diz respeito somente à ação isolada de uma pessoa, mas está relacionado também às instituições e às relações sociais.

O modelo de singularização, nesse sentido, além de realizar a classificação a partir de aspectos já direcionados pela LEP, como a idade do autor ou o regime de pena a ele designado, propõe analisar também outras questões do indivíduo e de seu contexto social, como problemas de saúde, origem social e necessidades individuais de serviços socioassistenciais, analisados de forma longitudinal a partir das trajetórias dos indivíduos, a fim de possibilitar uma custódia penal que ofereça oportunidades para que a pessoa privada de liberdade construa uma nova trajetória durante e após a prisão. Conforme o Modelo de gestão da política prisional – Caderno III: competências e práticas específicas de administração penitenciária, em que o modelo foi publicado, “atributos individuais e relações sociais, portanto, não se excluem nem se contrapõem, mas são compreendidos como pontos de interação entre sujeitos e estruturas sociais”[2].

Ademais, alinhado com a Constituição de 1988, o modelo de singularização procura reduzir os efeitos da prisão como espaço de reprodução da desigualdade social que muitas vezes levaram as pessoas ao crime. Ele está fundamentado, em especial, na garantia de direitos e no acesso a serviços, tendo em vista que, no cárcere, a gestão da vida é feita precipuamente pelo Estado, com uma alta redução da autonomia do sujeito.

Entre os principais objetivos do modelo estão a construção de um processo de autorresponsabilização do indivíduo pelo delito cometido, a identificação das suas esferas de sociabilidade – ou seja, dos vínculos estabelecidos na sua trajetória que, mantidos, podem auxiliar no cumprimento da pena e após a saída da privação de liberdade – e a ativação de políticas sociais conforme a necessidade individual. Para tanto, a singularização propõe não só um processo de matriciamento dos indivíduos, mas também dos estabelecimentos prisionais, com objetivo de avaliar os níveis de segurança, a complexidade e, principalmente, a oferta de serviços.

Fundamentada no exercício da cidadania, antes e depois do cárcere, o modelo de singularização possibilita relacionar as habilidades, potencialidades e necessidades da pessoa privada de liberdade aos serviços, à rede de políticas sociais, à comunidade do entorno e aos espaços do estabelecimento prisional. Dessa maneira, o comportamento ilícito não é compreendido como produto apenas de uma individualidade, mas sim a partir da sua relação com o contexto social de que fez e faz parte.

A classificação também do estabelecimento prisional a partir das necessidades do indivíduo de acesso a políticas sociais busca promover sua autonomia no processo de responsabilização pelo ato ilícito e seu agenciamento na produção de um novo contexto social após o cumprimento da pena. Em outras palavras, o modelo de singularização torna a classificação uma das principais ferramentas para uma execução penal baseada no exercício da cidadania, o que é fundamental para viabilizar um processo individual de responsabilização e para a constitucionalidade do sistema prisional.

 

REFERÊNCIAS
[1] Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Caderno de gestão dos Escritórios Sociais II: Metodologia para Singularização do Atendimento a Pessoas em Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/07/Caderno-II-Singularizacao_eletronico.pdf. Acesso em: 2 ago. 2025.
[2] Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Modelo de gestão da política prisional – Caderno III: competências e práticas específicas de administração penitenciária. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020, p. 25. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/bitstream/123456789/564/1/FINAL_CAD_3-mgpp_eletronico.pdf. Acesso em: 2 ago. 2025.

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