Rodrigo Chagas
Professor do curso de Ciências Sociais da UFRR e pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na região do alto rio Mucajaí, na Terra Indígena Yanomami (TIY), funcionava uma frente de garimpagem conhecida como “Ouro Mil”. Foi lá que, no domingo, 30 de abril de 2023, ocorreu uma operação do Ibama em parceria com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) que resultou na morte de quatro pessoas, segundo os dados oficiais. Dentre elas, Sandro, uma liderança do Primeiro Comando da Capital que estava atuando na TIY. Nos meses seguintes, diversos detalhes sobre o ocorrido vieram à tona. No entanto, a importância simbólica e o potencial explicativo desse evento ainda requerem investigações adicionais.
Recentemente, conversei com uma pessoa que estava presente no dia do ocorrido e que mantinha uma relação próxima a Sandro. Na verdade, tratou-se de uma segunda conversa que tivemos: no início de 2021, recebi um telefonema. Do outro lado da linha o rapaz me informava que em uma casa específica havia uma garota recém-chegada de um “garimpo faccionado”. Essa garota concordou em falar comigo, e, sem hesitar, me dirigi à periferia de Boa Vista. Lá, três pessoas desfrutavam de cervejas na garagem da residência. Ao chegar, fui apresentado a Karen, como irei chamar a moça jovem, com unhas longas e artisticamente decoradas, cabelos lisos e diversas tatuagens.
Realizei uma exposição das minhas intenções de pesquisa, assegurei a confidencialidade e segui demais procedimentos rotineiros, que foram conduzidos apressadamente. Meu objetivo principal era viabilizar uma entrevista em condições mais apropriadas, pois naquele dia ainda teria que ministrar aulas. Entretanto, por experiência prévia, eu sabia que obter uma segunda oportunidade de diálogo com indivíduos que atuam nas frentes de garimpagem poderia ser desafiador, dada a sua constante mobilidade entre as regiões de garimpos.
Embora desde 2018 se tenha relatos da presença de “facções” na Terra Indígena Yanomami, encontrar alguém disposto ou capaz de falar sobre a atuação concreta desses “faccionados” não foi uma tarefa simples. Faço um parêntese para esclarecer que utilizo os termos “facção” e “faccionado” como um recurso narrativo-alegórico, pois é assim que os entrevistados identificam o grupo e seus membros. Em termos formais-acadêmicos, trata-se de grupos cujos membros promovem crimes e impõem dominação armada, tendendo a constituir a governança de territórios rurais e urbanos. A maior dúvida que tenho em relação à presença desses grupos na Terra Indígena Yanomami é justamente o tipo de atividades que seus membros realizavam, bem como a extensão e a natureza do domínio e governança que conseguiram estabelecer ao longo do território ou em pontos específicos da TIY.
Durante esse breve encontro, Karen relatou um assassinato que presenciou. Segundo ela, outra jovem estava chorando após o programa com um garimpeiro. Ao ser questionada pelo “dono” da corrutela, a jovem afirmou que o garimpeiro estava forçando um “casamento”. Entre os garimpeiros, casar significa que a mulher se torna exclusiva daquele homem, o que, na maioria das vezes, inclui lavar, cozinhar e atender aos seus desejos sexuais. Em resumo, a garota ficaria sob o domínio de um garimpeiro.
Ao escutar esse relato, o dono, um membro da facção, assassinou o garimpeiro diante de todos os presentes. Logo após o incidente, o assassino quis ter um encontro com Karen. Suas amigas a convenceram de que seria seguro e ela topou o programa. Embora tudo tenha ocorrido como esperado, o medo a levou de volta a Boa Vista. Na ocasião em que conversávamos, ela havia acabado de regressar da TIY. Seu plano era voltar a trabalhar em uma área no rio Mucajaí, que considerava ter um ambiente mais “família”. Assim como outros garimpeiros e garimpeiras com os quais conversei na época, ela afirmava que o rio Uraricoera estava muito perigoso, com muitos faccionados. Na nossa conversa, entendi que todas as corrutelas com a presença de facções no rio Uraricoera eram chamadas pelos garimpeiros de “corrutelas queimadas”. Karen foi a primeira pessoa que ouvi usando esse termo, mas, a partir daquele momento, foi assim que o interpretei quando outras pessoas comentaram sobre corrutela ou garimpo “queimado”.
Em abril deste ano, recebi uma mensagem dizendo que o namorado da Karen tinha morrido “no garimpo”. Logo confirmei que se tratava de Sandro. Parecia uma ironia do destino que Karen tivesse se envolvido com um faccionado numa frente de garimpagem no alto Mucajaí. Como já havíamos nos falado anteriormente, tentei articular uma nova entrevista, mas as circunstâncias haviam mudado e minhas tentativas de encontrá-la não deram certo. Decidi não insistir. Preferi deixar o tempo passar e as coisas se acalmarem para que a situação ficasse mais clara e segura.
Recentemente, um jornalista entrou em contato buscando mais informações sobre o evento. Assim como eu, ele tinha várias questões sobre o ocorrido e, como resultado dessa conversa, tentei retomar o contato com Karen usando outra estratégia: enviaria nossas perguntas por escrito e ela poderia responder da maneira que achasse mais adequada. No mesmo dia em que considerei essa possibilidade (sem enviar as perguntas) recebi uma ligação. A pessoa passou o celular para Karen, que se prontificou a falar diretamente por telefone.
A conversa foi breve e um tanto formal. Desta vez, enfatizei a finalidade da entrevista e expliquei que a informação seria compartilhada com um jornalista. Principalmente, solicitei autorização para publicar que havia conversado com a namorada de Sandro, e chegamos a um acordo de que seu nome verdadeiro e imagens não seriam divulgados junto à história.
Uma das questões que ficaram mais claras para mim durante essa ligação foi que o Ouro Mil exemplificava o que chamamos de condomínios: um conjunto de células de exploração de ouro do tipo aluvionar. Abordo esse tema das células e condomínios em meu artigo “A Terra Indígena Yanomami ainda não está livre dos invasores”, publicado na edição n. 191 do Fonte Segura.
Neste condomínio, operavam quatro células de trabalho, somando aproximadamente vinte pessoas a serviço de Sandro e parceiros. Possuía também uma pista de pouso, oito máquinas (bombas d’água) e os dormitórios dos garimpeiros. Entretanto, não havia uma corrutela anexa a este pedaço de terra que estava sendo explorado pelos faccionados. A corrutela mais próxima era a da Cataleia, que funciona em uma plataforma flutuante estacionada no rio Mucajaí, onde Karen trabalhava.
É difícil determinar o quanto essa frente de garimpagem estava produzindo. No entanto, tomando como referência outras entrevistas que realizamos com garimpeiros, não é incomum que cada célula de trabalho produza semanalmente em torno de 250 gramas de ouro “mil” (ouro de alta qualidade) ou mais. No Ouro Mil, com quatro células de trabalho, havia o potencial de se produzir, pelo menos, um quilo de ouro por semana, o que equivale a aproximadamente um milhão de reais ao mês, considerando a cotação do ouro a R$ 280,00/grama. No entanto, não questionei Karen sobre a produção de ouro; eu queria saber como ela conheceu Sandro.
Ela chegou à região em janeiro, e entre seus clientes estava Sandro. Iniciaram um relacionamento e, em março, Karen foi convidada para morar no barraco que ficava na terra que ele havia “ganhado”. Ou seja, ela estava havia aproximadamente um mês naquele local quando ocorreu a operação. De acordo com o relato de Karen, eles tinham conhecimento de que haveria uma intervenção governamental naquele dia, e, ao ouvirem o barulho do helicóptero pela manhã, todos fugiram para a mata. As mortes teriam acontecido por volta das 14h, quando o grupo caiu em uma espécie de emboscada.
Segundo Karen, as mortes foram execuções e não resultado de uma troca de tiros. Ela ainda relata que nenhum equipamento ou estrutura do acampamento foi destruído, e que os servidores teriam deixado para trás o corpo de um quinto indivíduo, um venezuelano. Essa versão contrasta com as informações que foram divulgadas oficialmente, nas quais os agentes disseram terem sido recebidos com tiros. Vale ressaltar que não cabe aqui qualquer tipo de julgamento, apenas estou apresentando o relato da moça.
O ponto relevante é que, de acordo com a conversa que tivemos, a frente de garimpagem no rio Mucajaí, dominada por faccionados, atuava diretamente na mineração de ouro e possuía sua própria pista de pouso. Este “modelo de negócio” contrasta com o cenário relatado em 2021 por Karen. Naquele caso, eles dominavam uma corrutela no rio Uraricoera. Nesta corrutela “queimada”, tinham o domínio armado em relação à exploração sexual e possivelmente à venda de narcóticos no varejo − em que um grama de cocaína equivale a um grama de ouro −, mas não em relação à “posse” da terra e à produção de ouro.
Nos dois casos é possível que mantivessem uma relação estratégica com a logística, mas na corrutela os ganhos estavam apoiados no serviço e no comércio dentro do garimpo, enquanto o foco no Ouro Mil era a produção. Nesta segunda conversa, também ficou claro que a Corrutela Queimada era o nome de uma corrutela específica e não uma categoria para corrutelas faccionadas, como eu havia compreendido anteriormente.
Os vários elementos que já vieram a público sobre o ocorrido − como descrição de áudios, demarcação de códigos de área etc. –, unidos a outras entrevistas e trabalhos de campo que realizamos, constituem indícios de que o Primeiro Comando da Capital estava expandindo seu domínio junto às frentes de garimpagem na Terra Indígena Yanomami quando se iniciou o processo de desintrusão. Ainda não é possível medir a extensão da penetração do grupo na área, mas o que sabemos é que, segundo seus próprios membros, a TIY está classificada como: área 19, região garimpo, 100% PCC.