Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Recorro a este espaço novamente para dialogar com colegas acadêmicos-policiais-militares acerca das atividades de segurança pública. Todavia, as linhas que seguem não pretendem apresentar uma conclusão, mas considerações intermediárias porque o próprio campo e as instituições estão em “formação” ou, no mínimo, cristalizando-se. A ação policial que evitou o assalto a bancos em Varginha (MG) que resultou na morte de 26 suspeitos e na apreensão de armas que podem ser consideradas de guerra, abriu debate sobre protocolos e legitimidade da ação. Ainda mais: a atual modalidade criminosa, ora chamada de terrorismo ora de Novo Cangaço (termos descolados conceitualmente, no meu entendimento) é objeto de intervenção policial ou militar? O artigo Complexidades da Segurança Pública, de Glauco Carvalho, após descrever as características dos assaltos a bancos contemporâneos e a violência, inclusive letal, conclui que a ação é típica de guerra e, portanto, deve ser respondida por ações táticas militares e não policiais.
O uso de força maior em situações que são consideradas “extremas” é tida como solução e está relacionada a atividades militares em contexto de crime organizado com grande poder bélico. Esta “solução” não é recente, já que é constante a ação federal em apoio às atividades de segurança com intervenção militar das Forças Armadas (ícone extremo militar) em diversos estados, como no Rio de Janeiro, onde houve ocupação de territórios para implementação de UPP, crises nas instituições policiais ou eventos com repercussão internacional.
Mas esta pergunta é paralela a outras, como, por exemplo, qual o limite da ação policial? O que é ser policial? Quais as referências para ser um bom policial? Contribuições nesse sentido foram apresentadas no 15º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) ao debater a construção da identidade profissional dos agentes de segurança Pública, com destaque à questão da legitimidade da ação policial.
A modalidade criminosa que despertou preocupação nacional também foi objeto de debate no FBSP que pautou a temática, tendo como apresentadores estudiosos de referência nacional no processo de intervenção. Na mesa virtual foram apresentadas as características da modalidade contemporânea, mudanças históricas, mapeamento de eventos no Brasil, processos exitosos de intervenção, entre outras informações importantes que compõem conhecimento científico e de técnicas e tecnologias policiais de intervenção.
Para contribuir com o debate, fundamento minha fala no recente artigo que, ao descrever e debater a identidade policial militar, assim como ao qualificar o debate sobre a possibilidade de desmilitarizar as polícias no Brasil, Arthur Trindade apresenta a diferença entre atuações das Forças Armadas e das ações policiais (inclusive das polícias militares). Para Trindade, o uso da força não é o fator determinante que diferencia as atividades da polícia e dos militares, mas a dosimetria articulada com o uso proporcional e o objetivo da ação. Nas entrelinhas, ação militar utiliza o maior e mais eficiente recurso bélico em curto espaço de tempo para lograr êxito, sendo a letalidade uma possibilidade; a ação policial considera a letalidade como uma das possibilidades evitáveis, sendo último recurso. Assim, considero que não é como se desdobra a ação e quais táticas, técnicas e tecnologias são empregadas na ação contra a ação criminosa de grupos organizados, mas sim o objetivo da ação e os autolimites do emprego da força (inclusive letal) que caracteriza se foi uma ação policial ou militar.
Fundamentado ainda no debate apresentado no FBSP, as ações de análise histórica, mapeamento das ações, catalogação do armamento, identificação das pessoas envolvidas, monitoramento das ações prévias, estabelecimento das redes entre agências policiais local e federal, início da ação foram típicas de ações policiais. O desfecho, planejamento da ação e execução devem ser analisados para até mesmo estabelecer protocolos futuros, mesmo sendo uma análise de “engenheiro de obra pronta”.
Principalmente porque o final de uma ação militar é a ação política. O final de uma ação policial é a continuidade dos ritos investigativos para outras ações e ritos processuais. Quando há a necessidade de uma defesa política, como rito de mediar o conflito gerado ou para reificar a motivação da ação, saiu da esfera policial e há uma grande chance de ter sido militar ou não-policial. A ação policial deve ser fundamentada principalmente na legitimidade e na avaliação de que foram esgotadas as possibilidades na análise e construção do contexto (serviço de inteligência policial), no planejamento e na execução da ação. Analisar a “obra acabada” serve, então, para verificar se essas três etapas estavam dentro dos valores policiais e não militares. Se uma das etapas estiver enviesada, perde-se a legitimidade do processo democrático. Desta forma, a perícia dará um conjunto de informações importante para análise da terceira etapa da ação. Mas também é necessário analisar as outras etapas.
Reconheço que há este debate pela falta real do que é ser policial, quais são seus limites profissionais e qual é a finalidade da ação policial. Todavia não classificar como ações policiais aquelas que se desenrolaram em Varginha reduz a garantia dos direitos humanos que, havendo legitimidade democrática, faz parte de manter a segurança no Estado democrático de direito. Caso contrário, as ações do Estado correm o risco de se reduzir ao termo do Antigo Cangaço.