Profissão Polícia

Operações policiais no Estado de direito democrático

Para ser considerada efetiva, uma operação policial não deveria ser mensurada principalmente pela quantidade de prisões, apreensões de armas e drogas, de suspeitos presos ou mortos; mas pela capacidade de proporcionar incolumidade à sociedade por meios alinhados ao Estado democrático de direito

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil no Distrito Federal. Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

No Brasil, as operações policiais são conhecidas pela violência desproporcional, inclusive pela letalidade. A título de exemplo, cita-se a situação do Rio de Janeiro, onde em 2021, duas intervenções chocaram pelos números superlativos, sendo: operação da Polícia Civil, no Jacarezinho, com 28 mortes[i]; e operação da Polícia Militar, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, com 9 mortes e mais de 1.500 disparos efetuados pelos policiais[ii]. Nessa linha, em 2020, segundo o Observatório da Segurança, pelo menos 819 pessoas morreram em contexto de operações policiais no Rio de Janeiro[iii]. Com efeito, a violência seria intrínseca às incursões das polícias brasileiras? Ainda, seriam possíveis operações policiais em consonância com o Estado democrático de direito?

Apesar da frequência de casos de letalidade em operações policiais, não se conhece a proporção de mortes exclusivamente decorrentes dessas ações pelo Brasil afora. Contudo, ao se observar a quantidade de mortes oriundas de intervenção policial, que em 2020 chegou a 12% do total das mortes violentas intencionais do país, conforme dados do Anuário de Segurança Pública (2021)[iv]; é possível que considerável parte dessas mortes ocorra em operações. Nesse sentido, a letalidade policial não é particularidade das corporações do Rio de Janeiro, mas é efeito perverso que perpassa polícias brasileiras orientadas por diretrizes notadamente combativas e bélicas.

A dimensão da violência desmedida no âmbito de operações policiais levou à judicialização, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635[v]. Com isso, em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu restringir as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, sobretudo durante a pandemia da covid-19. Daí se estabeleceu que as polícias devem justificar a necessidade da operação, com comunicação ao Ministério Público. Resultados preliminares dessa ADPF são discutidos no artigo “EFEITOS DA SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES POLICIAIS NO RJ[vi]”, publicado na Fonte Segura nº 118, no qual se demonstram evidências de que o meio judicial tem sido efetivo na coibição da violência policial.

Não obstante, mesmo com a ADPF nº 635 as intervenções policiais não deixaram de ser realizadas com pretextos obscuros, tampouco se tornaram menos violentas. Assim, falta transparência no planejamento, execução e resultado das incursões policiais, o que abre suposição para motivações escusas, como ações de milícias ou de justiceirismos. Para piorar, praticamente inexistem conceituação e normatização sobre o tema operação policial, até mesmo nas próprias corporações. Por conta dessa indefinição, operação policial pode ser qualquer atividade rotulada como tal, o que permite ações permeadas de empirismos, violências injustificadas e ilegalidades.

Diante disso, seria conveniente que o Poder Público, com destaque as polícias, buscasse normatizar a temática operação policial. Nessa linha, sugiro um conceito e algumas balizas para orientar as intervenções policiais. Por operação policial, poderíamos entender como um conjunto de atos coordenados, executados de forma planejada e em caráter sigiloso, desencadeados a partir de um levantamento prévio de informações, com um objetivo definido e específico, conexos a uma investigação em curso. Esse conceito é uma adaptação do de operação de inteligência previsto na Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública.

Ademais, as operações policiais deveriam se guiar por alguns postulados, que podem ser compreendidos a partir de perguntas norteadoras, por exemplo: necessidade (essa operação é necessária?), legalidade (essa operação está agindo dentro do Estado de direito?), ponderação (essa operação está devidamente planejada?), proporcionalidade (os meios empregados para essa operação estão adequados?), racionalidade (essa operação é oriunda de planejamento ou de impulso?), oportunidade (o momento é o adequado para essa operação?), responsabilidade (os organizadores e executores da operação sabem de suas responsabilidades?).

O que se ressalta nessa proposta é que operação policial se caracterizaria pelo planejamento, com um esforço concentrado e o emprego de pessoal, técnicas e material especializado. Logo, ela se diferenciaria de outras ações e diligências pela complexidade, amplitude de objetivos, duração, meio empregado, resultados. Adverte-se que, nesse planejamento, entraria a justificativa apontando a necessidade da operação para a proteção da sociedade, com base em postulados que demarquem o caráter público das ações policiais.

Além do mais, vale frisar que o componente sigiloso das operações policiais não franqueia poderes irrestritos às corporações. Portanto, de forma alguma o sigilo deve ofuscar os princípios da transparência e publicidade dos atos públicos, como deve ser qualquer atividade policial. Com efeito, as ações policiais não podem ser conduzidas exclusivamente pela discricionariedade, pois devem possuir objetivos e escopos passíveis de avaliação por outras esferas do Poder Público. Caso contrário, em nome da segurança, permite-se arbitrariedades.

Desse modo, as polícias brasileiras precisam atuar no campo do Estado de direito democrático. Por conseguinte, as corporações devem ter ciência que suas ações não gozam de legitimidade absoluta. Ao contrário, elas devem ser conduzidas por presunção iuris tantum de veracidade, o que significa que possuem presunção relativa; ou seja, também precisam ser confrontadas quanto à sua legalidade, legitimidade e necessidade. De outra forma, não é pelo fato de ser uma operação policial em nome da segurança pública que quaisquer meios estão abonados. Destarte, convém às polícias sempre refletirem se o fim de uma operação justifica o meio usado, sobremodo quanto ao grau de restrições que podem causar aos direitos fundamentais[vii].

Em suma, uma operação policial para ser considerada efetiva não deveria ser mensurada principalmente pela quantidade de prisões, apreensões de armas e drogas, de suspeitos presos ou mortos; mas pela capacidade de proporcionar incolumidade à sociedade por meios alinhados ao Estado democrático de direito. Assim, conceituar, estabelecer postulados e parâmetros de transparência das operações policiais são imperativos para avaliação das próprias corporações. Isso não significa algemá-las em procedimentos formais, porém demonstrar que os meios usados numa operação policial são adequados, necessários e proporcionais.

Enfim, as polícias brasileiras devem saber que, enquanto agências estatais, são obrigadas a respeitar os direitos fundamentais na sua integralidade e sem discriminações, inclusive nos cenários das operações. Destarte, buscar regramentos para dimensionar o mandado policial – como propôs a ADPF nº 635 ou a conceituação sugerida neste texto no tocante às operações policiais – pode ser caminho para firmar que qualquer intervenção policial à margem do Estado de direito democrático é ilegal, bem como crime.

 

[i] Polícia Civil aponta que operação no Jacarezinho teve 28 mortos. Isto É. Disponível em: https://istoe.com.br/policia-civil-aponta-que-operacao-no-jacarezinho-teve-28-mortos/. Acesso em 22/12/2021.

[ii] Operação no Complexo do Salgueiro teve mais de 1.500 tiros disparados por policiais. Extra. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacao-no-complexo-do-salgueiro-teve-mais-de-1500-tiros-disparados-por-policiais-rv1-1-25297165.html. Acesso em 22/12/2021.

[iii] Ações Policiais no RJ: nove chacinas em dois meses. Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wordpress/wp-content/uploads/sites/2/2021/09/Ac%CC%A7o%CC%83es-da-Poli%CC%81cia-em-dois-meses-1.pdf. Acessado em 22/12/2021.

[iv] Anuário de Segurança Pública (2021) – Segurança em números. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2021/07/infografico-2020-v6.pdf. Acessado em 22/12/21

[v] ADPF nº 635. MPRJ. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/adpf-635 .Acessado em 22/12/2021.

[vi] EFEITOS DA SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES POLICIAIS NO RJ. Fonte Segura nº 118. Disponível em: http://fontesegura.forumseguranca.org.br/efeitos-da-suspensao-de-operacoes-policiais-no-rj-2/ Acesso em 22/11/2021.

[vii] Postulado da proporcionalidade, em sentido estrito, das ações do Poder Público, segundo. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 16.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 223.

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