Retrospectiva 2021

Efeitos da suspensão de operações policiais no RJ*

Dados inéditos indicam que a liminar do Supremo Tribunal Federal que proibiu operações na pandemia foi a medida mais eficaz contra a violência policial nos últimos 14 anos no Estado

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Daniel Veloso Hirata

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Carolina Christoph Grillo

Coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Renato Coelho Dirk

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Diogo Lyra

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

* Artigo originalmente publicado na edição número 83 do Fonte Segura, em 7 de abril de 2021

É em meio ao pior momento da pandemia da Covid-19 no Brasil que apresentamos aqui um balanço dos impactos de preservação da vida da liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), que restringiu as operações policiais durante a pandemia no Rio de Janeiro a casos “absolutamente excepcionais”. Essa decisão integra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635 – conhecida como ADPF das Favelas – e foi proferida no dia 5 de junho de 2020 pelo ministro Edson Fachin, sendo confirmada no plenário dois meses depois. Como será visto, ela obteve êxito em reduzir a letalidade policial em 34% na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) em 2020.

Pelo contraste entre a projeção tendencial (1.375) e o número efetivo de mortes por intervenção de agente do Estado (1081), estimamos que a liminar tenha salvado ao menos 288 vidas em 2020. Contudo, mais vidas teriam sido salvas se a decisão do STF não estivesse sendo desrespeitada desde outubro, quando o número de operações policiais voltou a aumentar.

Neste balanço, utilizamos dados oficiais produzidos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) e dados próprios (GENI-UFF) sobre operações policiais, todos referentes à RMRJ. Para situar 2020 na série histórica de 2007 a 2020, selecionamos como marcadores os seguintes eventos: 1) as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e seu desmonte; 2) o Sistema Integrado de Metas (SIM) e seu desmonte; 3) a crise socioeconômica que culminou com a falência do Estado do Rio de Janeiro e o regime de recuperação fiscal; 4) a intervenção federal na segurança pública; 5) a extinção da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG) e; 6) a liminar na ADPF 635.

Como mostra o gráfico 1, em 2020 houve uma redução de 59% das operações policiais em relação à 2019, apresentando a maior redução anual e o valor mais baixo da série histórica (320 operações, frente a uma média anual de 808).

Pela própria proposta das UPP’s, de fixação de bases policiais em favelas, não surpreende a diminuição das operações no período, reforçada pelo sistema de metas. Com o desmonte dessas políticas, as operações policiais voltaram a aumentar, ainda que em 2015 e 2016 tenham diminuído, devido à perda da capacidade operativa dos órgãos de segurança. Com o regime de recuperação fiscal, porém, o volume de operações policiais aumenta vertiginosamente, apresentando ligeira queda nos anos seguintes, o que se acentua em 2020 devido à liminar.

Os gráficos 2 e 3 sintetizam, respectivamente, a variação do número de vítimas de crimes contra a vida (soma das categorias de homicídio doloso, morte por intervenção de agente do Estado, latrocínio e lesão corporal seguida de morte) e de mortes por intervenção de agente do Estado.

O projeto das UPP’s e o sistema de metas coincidem com a diminuição dos crimes contra a vida e da letalidade policial, enquanto o desmonte dessas duas políticas e a crise socioeconômica coincidem com um aumento. Nota-se a diminuição dos crimes contra vida a partir da recuperação fiscal, quando é restabelecida a capacidade operacional do Estado do RJ, tendência que se acentua em 2020. Porém, a letalidade policial não parou de aumentar nesses anos, alcançando 1.643 mortes em 2019. Somente em 2020 houve um freio a esta tendência, mas o total de mortos (1.087) ficou ainda acima da média histórica (904).

Mas a decisão do STF vem sendo deliberadamente desrespeitada desde o mês de outubro de 2020. O gráfico 4 mostra a quantidade de operações policiais de janeiro de 2020 a fevereiro de 2021. Em junho, início de vigência da liminar, encontramos a frequência mais baixa (18) no período. A média mensal de junho a setembro (18,5) fica abaixo daquela de 2020 (26,7) e da histórica (70,5). No entanto, a partir de outubro, a média mensal (34,8) aumenta 86% e fica acima da média em 2020, chegando ao maior patamar no mês de janeiro (49), ainda que abaixo da média histórica (70,5).

O gráfico 5 mostra que a letalidade policial foi mais baixa em junho (18), sendo a média dos quatro primeiros meses (37,5) a mais baixa em toda a série. Janeiro (131) e fevereiro de 2021 (135) são os meses com maior número de vítimas, e a média entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021 (107) é 185% superior à de junho a setembro – acima, inclusive, da média histórica (74,2). Por fim, o gráfico 6 mostra que, em 2020, o mês com menos vítimas da violência letal foi também junho (195). Com o desrespeito à liminar, houve um aumento de 49% e a média mensal no período (321,6) ficou acima da de 2020 (294,7).

Se para certos setores da opinião pública parece auto evidente que as operações policiais reduzem a ocorrência de crimes, já demonstramos em estudo específico que isso não ocorre. Pelo contrário, elas se relacionam ao seu incremento. À luz de tais fatos, conclui-se que a liminar do STF na ADPF 635 foi a medida mais eficaz contra a violência policial dos últimos 14 anos no estado do Rio de Janeiro. No entanto, as autoridades políticas e policiais optaram pelo franco desrespeito à decisão da Suprema Corte, impondo nas favelas do Rio de Janeiro uma segunda onda de letalidade policial em meio à segunda onda da pandemia. Entre os dias 16 e 19 de abril está prevista uma audiência pública, convocada pelo STF, com vistas a subsidiar um plano de redução da letalidade policial. Esperamos que este seja um novo ponto de inflexão na trajetória da ADPF 635, colaborando para a defesa da vida.

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