Retrospectiva 2021

O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável*

Decisão do STJ definiu regras para a entrada policial sem mandado judicial em moradias. Problema da Segurança pública no Brasil não pode ser resolvido pela justiça criminal

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Catarina Correa

Juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT)

* Artigo originalmente publicado na edição número 80 do Fonte Segura, em 17 de março de 2021

Em nosso país, olhar para os pobres frequentemente é confundido com populismo/esquerdismo. É possível que muitos entendam a recente decisão do STJ (HC 598.051) estabelecendo regras para entrada policial sem mandado judicial em moradias como uma recaída esquerdista, não considerando a difícil missão dos policiais, sobretudo em áreas conflagradas pelo tráfico de drogas e milícias. Mas a epígrafe do voto do ministro Schietti não deixa margens a dúvidas. É decisão fundada na mais pura tradição liberal.

A chave hermenêutica do voto está na referência à William Pitt – que declara em alto e bom som que o Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável. Pitt fez esse discurso ao lutar contra esforço do Parlamento em inviabilizar a campanha de John Wilkes pela liberdade de imprensa, lutando pelo direito de os jornalistas publicarem as intervenções proferidas durante os debates parlamentares. A polícia inglesa entrava na casa das pessoas de madrugada para prendê-las.

Passados mais de dois séculos, aqui, nos acostumamos com a entrada policial forçada em moradias de periferia –só existe crime na periferia! – durante a madrugada. Parece razoável a muitos que essas pessoas tenham de suportar a porta arrombada e a casa vasculhada durante a noite em nome da segurança pública.

Entender o significado dessa decisão exige o alcance de algumas premissas. O problema da segurança pública no Brasil não pode ser resolvido pela justiça criminal. Enquanto o sistema de justiça criminal existe para limitar a punição estatal seguindo o devido processo, isolar temporariamente o criminoso e evitar a reincidência, o sistema de segurança pública é um dos serviços públicos estatais que, conjugadamente com os serviços de assistência social, de educação e saúde, deve criar as condições para o pleno desenvolvimento dos cidadãos e da própria sociedade.

Esse plexo de atribuições deve funcionar de forma coordenada, pois a prestação eficiente desses serviços públicos, em uma realidade de profunda desigualdade como a nossa, oferece a esperança de alguma equalização de oportunidades. Não é defender que se cometem crimes por falta de oportunidade. Esse ponto de partida é de uma pobreza intransponível. É a ideia de que a cooptação do menino que está na escola, tem alguma perspectiva de vida, torna-se mais difícil do que a do garoto abandonado à própria sorte, sem escola, sem saúde…

Portanto, segurança pública não se limita à repressão criminal; é, também, a criação do meio ambiente em que o crime, no universo de escolhas que se apresentam aos jovens, não seja a mais vantajosa (ainda que aparentemente). Esse contexto não pode ser fornecido apenas com a nobre atividade policial. A polícia, assim, não pode ser responsabilizada pela escalada de violência urbana.

Evidentemente, considerando que toda atividade humana comporta melhoramentos, não há como escapar a necessidade da reforma das polícias. Mas o ponto de partida não pode ser eventual fracasso dessas corporações, mas a falta de planejamento consistente da segurança pública. Simplesmente nunca existiu. Nós permitimos descalabros em nossas periferias. Não há nenhum plano para enfrentar o fracasso da escola – que não alfabetiza, que não oferece um ofício –; a inoperância do sistema de saúde; o déficit habitacional –a questão da segurança pública é também um problema urbanístico–; a falta de empregos (não subempregos!), etc.

A escalada da violência urbana constitui apenas a consequência desse caos, do qual as pessoas mais vulneráveis não têm como fugir. Nesse caldo de cultura, de falência do convívio civilizado, do salve- se quem puder, os mandatários eleitos – para dar uma satisfação aos cidadãos, de que estão fazendo algo pela segurança pública – determinam às polícias que apresentem resultados visíveis. E, como organizar a rede de serviços públicos revela-se inalcançável nos nossos padrões de governança, a solução adotada acaba sendo o chute na porta dos mais vulneráveis.

O problema do chute na porta é que ele é apenas o primeiro passo numa longa sucessão de erros. Da prisão em flagrante à condenação, passando pela prisão cautelar e pela produção da prova, o processo penal praticado em nosso país se revela um encadeamento burocratizado de ritos cujo único objetivo é prender quem nós sempre soubemos ser bandido, com um verniz de devido processo.

Creio ter sido essa a percepção manifestada no brilhante voto do ministro Schietti, ao derrubar a concepção de que, no crime de tráfico de drogas, seria lícito ingressar sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga, porque é delito permanente, ou por suposto (e improvável) consentimento.

Certos entendimentos jurisprudenciais revelam-se problemáticos, não em sua conformação abstrata, mas quando confrontados com a dura realidade. No caos que impera em nossas periferias, é discutível permitirmos a justificação a posteriori com base na permanência do delito ou em improvável permissão do morador.

Não significa desconfiar da instituição policial, mas compreender que, na diversidade da convivência humana, determinados indivíduos podem sentir-se tentados a exercer mal o poder que detém.

A Pedro Aleixo, vice-presidente de Costa e Silva, se atribui a famosa frase, que teria sido dita na reunião em que se decretou o AI-5, de 1968, e, em certa medida, espelha o cerne da decisão do STJ. Uma das inúmeras versões do episódio narra que, questionado pelo ministro da Justiça, Gama e Silva, se desconfiava da integridade do presidente em fazer uso “criterioso” do AI-5, respondeu: “Não tenho nenhum receio em relação ao presidente, eu tenho medo do guarda da esquina”. Em tempos de redefinição de normalidades, talvez essa decisão seja o primeiro passo para o novo normal nas relações entre o poder coercitivo estatal e os socialmente vulneráveis.

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