O que os processos de consolidação das Leis Orgânicas das Instituições de Segurança Pública ensinam?
Nos últimos três anos, profissionais de segurança pública, acadêmicos, políticos e representantes de movimentos sociais propuseram soluções quando as Leis Orgânicas voltaram à pauta legislativa. Ao debater as questões micro e macro, vejamos a forma como diversos conflitos internos e externos agem como fatores conservadores da atividade profissional e do campo de segurança pública
Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A recente sanção da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC) e a eminente sanção da Lei Orgânica das Polícias Militares (LOPM) demonstram os diversos conflitos internos e externos ao campo de segurança pública, assim como o processo da sua estruturação. Essas leis são soluções antigas, com alguns “retalhos” novos, resultantes de tensões por poder político e social que segmentos da segurança pública perceberam a “janela de oportunidade” para ratificar e, em alguns pontos, intensificar as relações formais e informais do próprio campo.
Isso não quer dizer que não havia soluções diferentes das colocadas. Nos últimos três anos, por exemplo, profissionais de segurança pública, acadêmicos, políticos, representantes de movimentos sociais propuseram soluções quando as Leis Orgânicas voltaram à pauta legislativa.
Arthur Trindade, pesquisador, professor e ex Secretário de Segurança Pública, já entendia que havia a necessidade de aumentar a participação da sociedade civil e de outros operadores no debate da Lei Orgânica das Polícias Militares. Para o pesquisador, entre outras questões, isso aumentaria a participação do Ministério Público, por exemplo, que auxiliaria no aperfeiçoamento do controle da atividade policial. A participação da sociedade civil também poderia incentivar a criação de academias policiais e laboratórios de perícia.
Já a pesquisadora e socióloga Carolina Ricardo salientou o quanto a sociedade civil organizada demandou ser ouvida no debate legislativo das leis em questão. Em sua análise, a LOPM diminui o controle externo das polícias, reduz a atuação policial ao campo jurídico ao exigir bacharelado em direito para a carreira de oficial e propicia o status de secretário de estado aos Comandantes-Gerais. Para Carolina, há mudanças consideráveis, como a exigência de Equipamentos de Proteção Individual e de critérios objetivos para distribuição do efetivo no território.
O pesquisador e Policial Civil Alexandre Pereira Rocha teve análise semelhante acerca da Lei Orgânica das Polícias Civis. Para o pesquisador, a lei tem acertos, mas há arranjos, interesses e valores corporativistas. Também destaca, entre outras questões relevantes, as exigências para o cargo de Delegado como sendo a consolidação de uma aproximação ao campo jurídico.
É importante notar que há diversas questões apresentadas. Todavia, ao debater as questões micro e macro, vejamos a forma como diversos conflitos internos e externos agem como fatores conservadores da atividade profissional e do campo de segurança pública.
O primeiro ponto é quem compõe o Campos da Segurança Pública e quais as competências institucionais. Se observamos as estruturas das Secretarias Estaduais de Segurança Pública, por exemplo, há o reflexo dessa disputa pelo campo e os conflitos pela construção e manutenção das políticas de segurança locais. No Distrito Federal, por exemplo, são instituições vinculadas à Secretaria de Segurança Pública a Polícia Civil (PC), a Polícia Militar (PM), o Corpo de Bombeiros Militar (CBM) e o Departamento de Trânsito (DETRAN). Já em Goiás, além dessas agências, a Administração Penitenciária está vinculada e há a ausência do DETRAN na estrutura. Já no Rio de Janeiro, a Secretaria foi “refundada” recentemente, pois há a Secretaria de Estado de Polícia Militar, a Secretaria de Polícia Civil, a Secretaria de Defesa Civil e a Secretaria de Defesa Civil. Se há divergências sobre como “organizar” as agências e o nível de autonomia no campo da segurança, como há a construção de políticas públicas se, por exemplo, o Comandante Geral reporta diretamente à governança estadual, e não à Secretaria? Quais os fluxos decisórios sobre as políticas de segurança? Que outras agências e profissionais podem contribuir?
Esse processo de estruturação do campo também está marcado por disputas interagências. Os limites ainda estão se definindo a partir dos conflitos porque as agências têm seus “objetos de trabalho” como capital para se consolidar no campo. Assim, a disputa pelo Termo Circunstanciado de Ocorrência entre as PCs e a PMs e a disputa pela Abordagem a Suspeitos entre a PMs e as Guardas Civis são exemplos de desarticulações, assim como imprecisão de competências e de trabalho baseada no combate ao crime e na tradição.
Por fim, já na perspectiva micro, os conflitos entre as classes profissionais em cada agência na tentativa de garantias de direito e projeção interna tornam-se um fator que está presente nas consolidações das Leis Orgânicas. A consequência dessa disputa está presente em várias relações profissionais. Uma das consequências é o processo de produção dos documentos Procedimento Operacional Padrão; dos currículos de formação profissional e de educação continuada; e, entre outros, dos códigos de ética e de conduta. Outra consequência é o monopólio enquanto representante institucional e de articulação de reivindicações trabalhistas.
Esses conflitos internos em cada agência e os conflitos entre as agências pela disputa no campo de segurança considero como alguns dos fatores internos e externos divergentes em que os atores interessados aguardam janelas de oportunidades para “pequenas conquistas” ou consolidações das posições dentro da agência ou no campo da segurança pública.
Todavia, há fatores internos e externos convergentes que modificam as relações de trabalho, as agências de segurança e o campo da segurança pública. O principal é o processo de reconhecimento de determinada violência, assim como o reconhecimento das causas de determinada criminalidade. Esse processo envolve diversos segmentos da sociedade civil organizada no reconhecimento do problema e na formulação e implementação da política de segurança.
Como exemplo, o reconhecimento das violências domésticas e de gênero propiciou a tipificação qualificadora penal e a produção de dados para formulação e análise de políticas. Como algumas consequências, há a modificação do processo de ensino nas agências estatais, incorporando a temática nos cursos de formação profissional e reestruturando as agências com formação de grupos especializados, com delegacias especializadas e grupos de policiais militares específicos para atendimento. Houve a produção de protocolos de atendimento direto nas/das agências de segurança e entre as agências. Isso também propiciou um fluxo de atendimento estrutural do campo de segurança sobre violência doméstica com competências específicas definidas, delineando os grupos principais (Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público, Varas Criminais Especializadas e Varas de Execuções Penais) e grupos de acolhimento à vítima (Programas de diversas secretarias de Assistência Social).
O controle externo da atividade de atendimento, nesse caso, torna-se mais objetivo, pois cada fase (desde a primeira entrevista policial no local da ocorrência à audiência na Vara Criminal Especializada) é fundamentada em diversas áreas do conhecimento e todos os atores (pessoa acusada, vítima e os diversos agentes do Estado) têm possibilidade de ter o conhecimento dos ritos e seus limites.
Nesse caso específico, os fatores internos e externos convergentes definiram competências de atuação; integraram as agências; alteram e consolidaram o conhecimento mínimo para atuação profissional; tornaram as ações de atendimento padronizadas, auxiliando no controle da ação profissional; formaram quadros específicos; fomentaram a diversidade de gênero para o atendimento; consolidaram as evidências científicas como orientadoras da atuação cotidiana e do planejamento da agência e do campo; e delinearam o campo de segurança pública e grupos profissionais e agências colaboradores acerca da temática.
Portanto, há mudanças, e são resultantes de fatores divergentes e convergentes. As possíveis rupturas esperadas pelos grupos progressistas só serão possíveis em “janelas de oportunidades”. Grupos conservadores, todavia, também estão a postos para consolidar as tradições, os modelos de policiamento, as posições de dominações profissionais dentro e fora das agências e consolidar as prerrogativas institucionais. Dessa forma, rupturas são difíceis. Mas há a necessidade de construir condições a partir da formação científica e da participação da sociedade civil no reconhecimento das questões e soluções pertinentes à segurança pública.
Aliás, essas condições, além de auxiliar nas possíveis rupturas, também são os fatores que auxiliam na convergência interna e externa. Caso contrário, quando não há a construção de forças internas e externas convergentes, a tendência é o conservadorismo das relações de poder político e social.