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A nova Lei Orgânica das Polícias Militares precisa ser mais debatida

Não há dúvida de que as Polícias Militares brasileiras precisam se adequar à realidade política, social e tecnológica. A nova Lei Orgânica requer uma ampla discussão que inclua, além das polícias, segmentos da sociedade civil e outros operadores do direito, mas isso não está ocorrendo na prática

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Arthur Trindade M. Costa

Professor de Sociologia da UnB e membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Tramita no Congresso Nacional em regime de urgência o Projeto de Lei 4.363, que estabelece a nova Lei Orgânica das Polícias Militares. O projeto é oportuno, pois até hoje as Polícias Militares são regidas pelo Decreto-Lei Nº 667 de 1969, regulamentado por um Decreto de 1983 conhecido como R-200. Ou seja, as polícias de hoje estão sob a vigência de uma lei criada no regime militar.

A necessidade de atualizar a legislação que rege a atividade policial não é exclusividade do Brasil. Nas últimas décadas, alguns países promoveram profundas reformas nas leis de polícia. Em 2000, a Irlanda do Norte estabeleceu o Police Northern Ireland Act. Em 2007, Portugal aprovou as leis orgânicas da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública. No Chile, a reforma da Lei Orgânica dos Carabineros é um dos principais temas que estão sendo discutidos na recém-instaurada Assembleia Nacional Constituinte. As reformas visaram adequar a atividade policial à realidade político-social.

Não há dúvida de que as Polícias Militares brasileiras precisam se adequar à realidade política, social e tecnológica. Em função da complexidade e do impacto, a nova Lei Orgânica requer uma ampla discussão que inclua, além das polícias, segmentos da sociedade civil e outros operadores do direito. De forma geral, as discussões devem contemplar diversos aspectos, tais como fortalecimento da democracia, impacto federativo, eficiência e profissionalização da atividade policial.

Entretanto, não é isso que está acontecendo. O tema foi muito pouco debatido na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados. A sociedade civil praticamente foi excluída da discussão. Assim, temas como respeito aos direitos humanos, igualdade de gênero e raça não foram contemplados adequadamente no projeto de lei.

Setores importantes do Estado também não participaram dos debates. O Ministério Público, responsável pelo controle externo das polícias, não foi ouvido. Assim, estamos perdendo uma boa oportunidade de aperfeiçoar o controle da atividade policial. O Exército Brasileiro, que exerce controle sobre as polícias através da Inspetoria Geral das Polícias Militares, também não participou do debate. Com isso, perdemos uma boa chance de extinguir esse órgão e ampliar a desvinculação entre as polícias e as Forças Armadas.

Há temas fundamentais que deveriam ser incorporados à nova lei. Um deles é o controle da atividade policial. Violência e arbitrariedade policial não são problemas exclusivos do Brasil. Nos últimos 30 anos, diversos países vêm tentando garantir que suas respectivas forças policiais se submetam rigorosamente ao Estado de Direito. Muitos países modificaram a legislação que rege a atividade policial a fim de incrementar mecanismos de controle e supervisão, bem como promover a transparência das informações. Lamentavelmente, o projeto de lei não trata desse assunto.

O debate sobre uma nova lei orgânica das polícias militares não pode desconsiderar seus impactos nas relações federativas. Afinal de contas, embora regidas por legislação federal, as polícias militares são organizadas e mantidas pelos estados. Uma das maiores deficiências do nosso sistema policial é a falta de incentivos para a cooperação interestadual. A nova lei Orgânica poderia incentivar a criação de academias de polícia e laboratórios de perícia regionais. Reduziria custos, melhoraria a qualidade e aumentaria a integração.

Finalmente, a nova lei precisa enfatizar a necessidade de profissionalização e especialização da atividade policial, para a maior eficiência na entrega de seus serviços à população, dentro de uma doutrina de polícia democrática, racionalmente organizada, eficiente e respeitosa dos direitos humanos dos seus integrantes e da população em geral. Para isso, é necessário induzir mudanças tanto no mecanismo de gerenciamento de seus recursos humanos e materiais como nas estruturas de controle e supervisão da atividade policial. No mesmo sentido, também é necessário atualizar o sistema de formação e treinamento, introduzindo novos currículos e procedimentos operacionais.

A elaboração de uma Lei Orgânica é a oportunidade para consolidar uma esfera “policial militar”. Esse campo tem especificidades próprias da segurança pública, que é bastante distante do militar.  A Lei deve contribuir para a criação de uma polícia militar com identidade própria, centrada no policiamento preventivo e ostensivo a ser exercido numa sociedade democrática, com foco na garantia de direitos, na defesa da vida, na prevenção do crime e na coprodução da segurança pública entre o Estado e os cidadãos.

É necessária e oportuna a proposta de criação de uma nova Lei Orgânica das Polícias Militares. Entretanto, a nova lei precisa ser amplamente debatida pela sociedade civil. Do contrário, a legislação acabará por privilegiar quase que exclusivamente interesses corporativos.

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