Multiplas Vozes 31/08/2022

O público como privado: a tentativa de “carteirada” em policiais militares de Ubá reflete o formato das relações de poder constituídas no Brasil

Em virtude das relações de poder constituídas em âmbito local, especialmente nos municípios do interior, onde os sistemas de justiça e segurança pública atuam com número reduzido de servidores, a retaliação a policiais por vias institucionais constitui uma hipótese que não deve ser descartada

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Juliana Lemes da Cruz

Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Professora de Ensino Superior; e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni

Uma mulher, médica, que teve a sua profissão enfatizada nas chamadas dos canais de comunicação, foi o alvo da notícia que descreveu o episódio em que ela teria solicitado a policiais militares mineiros que retirassem uma viatura do local em que se encontrava estacionada para que o veículo em que ela estava tomasse o lugar. Para destacar o pedido, a mulher, aparentemente embriagada, teria afirmado ser filha da juíza da Vara da Infância e Juventude da cidade de Ubá, em Minas Gerais, e que “só queria um lugar para parar, sem confusão”.

Ocorre que a cena foi registrada em vídeo. No destaque, a mulher inconformada por não ter tido seu pedido atendido. Mesmo orientada acerca de um estacionamento comum nas proximidades do local, a médica insistiu, em tom intimidatório, dando a entender que merecia tratamento diferenciado em razão do seu parentesco com uma magistrada da cidade.

O vídeo ganhou ampla repercussão, dentre outros motivos, por refletir o comportamento de pessoas que teimam em reproduzir as práticas sociais herdadas de um passado recente do Brasil. Tempo em que se exigia explicitamente ou se fazia entender, de forma camuflada, que a pessoa que solicita é digna de ser tratada com certo privilégio, não submetida aos ritos burocráticos dos processos comuns, sem ser fiscalizada em uma blitz, ou mesmo sem pagar para ter acesso a certos espaços. Práticas similares são popularmente chamadas de “carteiradas”.

Sob nova roupagem, a correlação de forças entre grupos de interesse distintos permanece ditando as regras da disputa por poder. Assim como sugere o histórico brasileiro, esse embate alerta sobre o espaço em que as relações de interesse de particulares abastados orientavam como agiriam aqueles investidos de cargo público. Um tempo em que o público era tido como privado. As estruturas públicas, bem como seus agentes, eram tratados como vinculados a particulares.

Vale lembrar que o conjunto dos três poderes que compõem o Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) sintetiza a dimensão das forças que devem atuar em função dos interesses da coletividade. De modo não oficial, um 4º poder se apresenta tão forte quanto os demais: a mídia.

No caso em questão, sua ampla visibilidade estabeleceu importante papel: a repercussão do que, atualmente, é conduta reprovável socialmente. Se fosse diferente, não seria questionada a ponto de as instituições/categorias envolvidas precisarem se posicionar sobre o episódio. Nessa direção, as redes de comunicação tendem a forçar as notas oficiais sobre os fatos, uma vez que dão ênfase ao cargo ocupado pela pessoa envolvida e não à sua figura individual. O cargo alimenta a notícia porque ele se associa a alguma forma de poder – econômica, política, estatal, dentre outras –, e, por sua vez, o uso das câmeras para registro da atuação policial sugere ser algo favorável ao controle social das políticas e instituições.

As imagens do episódio ocorrido em Ubá retratam um exemplo do que pode estar ocorrendo em outros locais com profissionais da segurança pública investidos do poder do Estado para agir de forma a inibir as violações das normas, e, por não terem registro ou testemunhas do fato, são mal interpretados ou acusados de abusadores do poder que detêm. Em muitas situações, mesmo tendo fé pública, o policial é desacreditado e submetido ao julgamento público antecipado. Aqui não se trata de vitimizar a figura do policial que trabalha, em regra, na ponta da linha dos serviços, lidando diretamente com os problemas sociais que demandam urgência na resolução. Trata-se de expor a face pouco publicizada da realidade em torno da relação entre polícia e comunidade.

As redes sociais tornaram-se o mais poderoso dos instrumentos de controle social, o que ajuda a frear a ação dos maus profissionais, desestimulando a reprodução das posturas reprováveis por parte de outros policiais. Nesses moldes, assim como sistematizado por Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o uso das câmeras inibe excessos durante a ação policial, funcionando como um sistema de controle.

De outro lado, em virtude das relações de poder constituídas em âmbito local, especialmente nos municípios do interior, onde os sistemas de justiça e segurança pública atuam com número reduzido de servidores, a retaliação a policiais por vias institucionais constitui uma hipótese que não deve ser descartada. Nesse sentido, o uso das câmeras pode representar, além de um limitador da ação dos maus profissionais, um inibidor artificial das “exigências” de cunho particular aos servidores e a possibilidade de elucidação de situações em que os policiais são alvo de denúncias infundadas nas respectivas corregedorias, por cidadãos comuns, em função da natureza do serviço policial.

Em que pese as polícias militares sejam estaduais, o que faz com que atuem nos limites dos respectivos Estados, a repercussão de casos relacionados à atuação policial afeta toda a classe policial militar e não permite consideração sobre as diferenças geográficas, sociais, históricas e econômicas do local onde o fato tenha ocorrido. Isso porque a difusão das informações via redes sociais e outros canais de comunicação não respeita fronteiras. Desse modo, episódios envolvendo policiais militares de qualquer Estado que seja têm o poder de macular a imagem e colocar em xeque a atuação de profissionais de todas as corporações do país.

Importante frisar, que, se situações que caracterizam uma espécie de “carteirada”, como a ocorrida em Ubá, ainda têm sido registradas, pode ser que os apelos por favorecimentos em razão de posição de poder têm sido atendidos em alguma instância e/ou lugar. Afinal, não é algo corriqueiro que um cidadão comum, desvinculado de parentes poderosos, exigiria que policiais retirassem uma viatura de um determinado local para que pudesse estacionar seu veículo particular no lugar.  Decerto, quem o faz, o faz encorajado, ciente do poder ao qual tem acesso e destituído de qualquer constrangimento a respeito de sua atitude, pois acredita ter o direito de exigir tratamento diferenciado para si.

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