Múltiplas Vozes 30/11/2022

O oportunismo frente à condição de legitimidade: sobre a natureza dos projetos políticos dos policiais eleitos

A possibilidade da criação do Ministério da Segurança Pública parece constituir importante medida para minimizar os problemas que brotam do setor. A diversidade de instituições e modalidades de atividades associadas ao campo da segurança pública exige, decerto, urgência de atenção qualificada, tomando como base a especificidade dos profissionais da categoria

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Juliana Lemes da Cruz

Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Professora de Ensino Superior; e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni

A condição de legitimidade da representação de policiais como porta-vozes do campo da segurança pública é um consenso, mas questiona-se até que ponto constituem lideranças da categoria ou estão, na verdade, inclinados a agir movidos pelo oportunismo.

Nos bastidores do campo da segurança pública, restrito aos que dela fazem parte, circula o dissenso sobre a principal motivação de membros da categoria terem lançado suas candidaturas no pleito eleitoral 2022. “O número de candidaturas de policiais nas eleições gerais de 2022 cresce 27% em relação a 2018”, anuncia o conteúdo do texto do professor Arthur Trindade e de David Marques sobre a matéria –  o artigo faz parte da edição 150 do Fonte Segura. Nessa direção, destaque à conhecida “Bancada da Bala”, que engloba membros da segurança pública como policiais, bombeiros e militares das Forças Armadas. Em 2022, o número de eleitos desse segmento triplicou, se comparado à quantidade de eleitos no pleito de 2018.

Em meio a um ambiente político marcado pela polarização, no qual há dissenso sobre perfis e intenções das candidaturas, nem sempre pode ser uma boa ideia a exposição da natureza dos projetos políticos defendidos pelos vencedores. Ainda assim, foi possível a caracterização de dois principais grupos. Cada qual, ao seu modo, imprime suas propostas e o alcance das respectivas condições de legitimidade no sentido da defesa da categoria que representam.

No primeiro grupo, aqueles que, ao longo de suas trajetórias se mobilizaram abertamente e reconhecidamente na defesa dos interesses da classe, sob um projeto político à serviço da coletividade. Subdividem-se entre os que defendem um projeto de sociedade, transitando na diversidade da agenda pública, e aqueles que terão como âncora, tão somente, os interesses classistas. Ambos têm raízes na base das lutas da categoria profissional, portanto, dispõem de legitimidade para defendê-la nas instâncias de representação.

No segundo grupo, encontram-se aqueles que, no curso de suas trajetórias, quando em posições de poder em suas respectivas instituições e podendo se posicionar diante de injustiças com membros sem poder de voz, silenciaram, toleraram, ou melhor, passaram “panos quentes” para situações no intuito de evitar dissabores com esferas superiores de gestão. E, por terem ocupado cargos ou funções de destaque, ao se afastarem delas insurgem-se como se fossem, durante suas carreiras, fervorosos defensores da categoria. Estes têm um nítido projeto político individual. Subdividem-se entre os que emplacam discursos inflamados pela defesa da classe, visando à manutenção em outra estrutura de poder, sob um esforço oportunista, e aqueles que, deslocados da realidade cotidiana da categoria, encontram espaço para narrativas alinhadas a proposituras inaplicáveis e deslocadas da real necessidade do setor. Ambos não dispõem de compromisso real com a categoria que evocam como pilar de suas representações; logo, têm contestada a legitimidade dos seus atos/posturas como representantes de classe.

Como historicamente consolidado, as polícias são estruturas fechadas, principalmente as militares estaduais. Justifica-se, por um lado, em razão da natureza da atividade, que requer atenção constante para a segurança, tanto dos servidores, quanto das informações coletadas. Por outro, constitui elemento que influencia percepções distorcidas do público externo sobre as questões que envolvem o ambiente policial. Por assim ser, corre-se o risco de que, nas instâncias legislativas, representantes policiais não sejam capazes de traduzir as demandas do universo heterogêneo da segurança pública de modo a otimizar a prestação de serviços à comunidade, bem como qualificar o olhar sobre as demandas urgentes dos profissionais que atuam diretamente com a população.

O oportunismo frente à condição de legitimidade se consolida no movimento interno às instituições, pois apenas nesse espaço é possível a identificação dos membros reconhecidos pelos pares como representantes legítimos. De outro modo, em instâncias externas, o alcance da legitimidade de dado representante da segurança pública talvez jamais seja alvo de contestação, o que favorece seus projetos de poder.

Ocorre que, diferentemente de outras categorias, a segurança pública não dispõe de instâncias internas continuadas e efetivas de debate e organização das reinvindicações a partir da ótica dos quadros da base. Ou seja, dos profissionais que atuam na ponta da linha dos serviços. Pelo contrário, os porta vozes da categoria junto aos governos, em regra, não experienciam diariamente as ruas, e desconhecem, no campo prático, as particularidades da natureza das atividades desenvolvidas.

De fato, os eleitos em 2022 podem representar o esvaziamento das pautas caras aos policiais (Edição 157/FS). Se o descompromisso é uma real hipótese, por que votos foram confiados aos seus interlocutores? Tem-se, de um lado, o ingresso na política como alternativa à defesa da classe; de outro, uma estratégia oportunista para alcance ou manutenção/ampliação da condição de poder. De outro modo, a condição de legitimidade será argumento permanente para a chancela oficial de atuações deslocadas do interesse coletivo da categoria, após garantir espaço nas instâncias de decisão e poder em razão do oportunismo.

Os candidatos mais bem votados representaram a possibilidade de mudança, além de sugerirem a identificação com outros elementos, perceptíveis intramuros, os quais destaco: a limitação ou inexistência da formação política da categoria – as associações de classe, em regra, limitam-se ao oferecimento de assistência jurídica e espaços de lazer –;alguns membros são cooptados pelo discurso radicalizado, que toma como base a exploração dos medos e concepções particulares; a sensação de abandono, especialmente dos policiais, por parte do campo político; e a adesão em massa ao discurso de combate à corrupção.

Com o início do próximo governo, a possibilidade da criação do Ministério da Segurança Pública, apartado da Justiça, parece constituir importante medida para minimizar os problemas que brotam do setor. A diversidade de instituições e modalidades de atividades associadas ao campo da segurança pública exige, decerto, urgência de atenção qualificada, tomando como base a especificidade dos profissionais da categoria.

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