Revista Brasileira de Segurança Pública 22/03/2023

O nascimento do Estatuto do Desarmamento*

Qual foi a visão que deu origem ao Estatuto do Desarmamento? Esta visão estava bem alicerçada no contexto social em que estava imersa? Estas são as duas questões que este artigo visa responder

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RODRIGO MARCHETTI RIBEIRO*

Advogado, mestrando em Direito na Universidade de São Paulo, com graduação em Direito pela mesma Universidade. Dupla titulação em andamento pela Université Lumière Lyon II (licence en droit)

Dentro da polarização instalada no país, o tema do desarmamento (ou armamento) firmou-se como central — verdadeiro antagonismo — entre ambos os lados. Nesta discussão, um dos argumentos mais comuns, pelos críticos, é de que o Estatuto de 2003 seria um instrumento inadequado de combate à criminalidade (i.e., uma política pública).

Partindo do pressuposto que políticas públicas são criadas para lidar com problemas sociais e/ou fomentar mudanças sociais (MADER, 2001), é de se esperar que políticas que são criadas de forma bem alicerçada na realidade, i.e., nos fatos, tenham êxito (e, contrario sensu, que as mal alicerçadas falhem). Entretanto, apesar de o Estatuto ter encontrado esta centralidade no debate político, pouco se sabe sobre qual a visão que o alicerçou e, muito menos, se esta visão estava ou não de acordo com a realidade dos fatos.

Os projetos que deram origem ao Estatuto foram apresentados no Senado no ano de 1999 e apontavam que o quadro de segurança pública no país seria calamitoso, com uma profusão de armas de fogo, que teria levado a um crescimento dos homicídios (especialmente por motivações triviais), o que demandaria uma ação enérgica do Estado de proibição de porte e propriedade (comumente chamada de posse) de armas de fogo — do outro lado, a oposição ao projeto argumentava que deveria ser aliada a proibição excepcionada do porte com uma maior restrição e controle sobre a propriedade de armas de fogo.

O Desarmamento foi alicerçado ao redor de três questões e respostas distintas sobre a realidade:

Quais os homicídios? Os desarmamentistas argumentavam que a profusão de armas de fogo no país estaria impactando as taxas de criminalidade em razão de homicídios por motivos triviais (desavenças que, sem a presença da arma de fogo na cena, não terminariam em morte). Esta narrativa era questionada pelos armamentistas, que entendiam que o problema das armas seria ligado, sobretudo, ao crime organizado.

Como o crime se arma? Apesar da tese dos homicídios triviais, armamentistas e desarmamentistas concordavam que, ao lado destes crimes, existiriam criminosos atuando de forma habitual, organizada e armada, e que o Estado era incapaz no combate desta violência. Porém, enquanto para os armamentistas este armamento do crime seria de grosso calibre e de origem ilegal, para os desarmamentistas, ante a incapacidade crônica do Estado, os cidadãos buscariam modos de autodefesa, dentre eles a aquisição de uma arma de fogo, que terminariam nas mãos dos criminosos em decorrência de furtos e da incapacidade dos cidadãos para a sua autodefesa.

Qual a aptidão do cidadão para a autodefesa? Finalmente, o pressuposto lógico do segundo argumento desarmamentista também era controverso, isto é, enquanto, segundo os desarmamentistas, o cidadão era inapto para autodefesa, segundo as estatísticas, para os armamentistas a verdade seria no sentido oposto, uma vez que as próprias estatísticas seriam questionáveis.

É um fato, empiricamente verificável, que entre os anos de 1980 e 2000 o Brasil assistiu a um grande crescimento dos homicídios (em um sentido mais lato, da violência) e, inclusive, dos homicídios com uso de arma de fogo; (WAISELFISZ, 2004) bem como é empiricamente verificável, também, que estes homicídios são principalmente de homens, jovens, e concentrados em áreas de exclusão. (PERES, 2004) Há um triplo motivo para isso:

O primeiro é o processo de urbanização brasileiro, que, como aponta Zaluar (2007), fez da violência um modo legítimo de solução de conflitos no meio urbano brasileiro, em razão da não introdução dos novos habitantes aos valores de civilidade, negociação, tolerância e conversação do meio urbano, aliado a um quadro de carência material e institucional (falta de serviços públicos) — importante salientar que há quem entende que a violência sempre foi um modo de resolução de conflitos aceito na sociedade brasileira, tanto no meio urbano, quanto no rural. (LIMA et al., 2020)

O segundo foi o surgimento do crime-negócio (ou organizado) no final dos anos 70 (tráfico de drogas), com a consequente potencialização dos sentimentos de medo e insegurança (o que, dentre outras coisas, causou um maior armamento da população), que, por sua vez, levou a um endurecimento da política de repressão penal (encarceramento), que, ao contrário do esperado, funcionou como um fator de impulsionamento do crime organizado, culminando, inclusive, no surgimento de facções criminosas, como o PCC. (ADORNO, 2008; CALDEIRA, 2011; PUCCI, 2006; ZALUAR, 2007)

Desta forma, é possível dizer que ambos os lados na discussão a respeito do Estatuto do Desarmamento tinham razão e, consequentemente, impossível dizer que seja uma política mal alicerçada na realidade. Todavia, é evidente que, após o referendo de 2005, o Estatuto fez clara opção por uma das duas opções apresentadas no debate de 1999 a 2003 (a menos restritiva) — e não é, pois, o juste-milleu entre ambas.

  • O presente texto é uma versão editada de texto publicado da edição nº 1 do Volume 17 da Revista Brasileira de Segurança Pública. A íntegra do artigo pode ser acessada aqui.

 

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