Múltiplas Vozes

O interrogatório do adolescente em conflito com a lei

Se a decisão do ministro Lewandowski for replicada, adolescentes infratores enfim poderão ter acesso a garantia processual básica e ter o direito de autodefesa respeitado de forma adequada pelas autoridades

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Betina Barros

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Primeiro a acusação, depois a defesa. Essa é uma ordem bastante evidente na lógica de uma disputa argumentativa, seja no contexto de um processo jurídico ou não. No ordenamento penal brasileiro, essa constatação geral está normatizada desde que o Código de Processo Penal foi alterado, em 2008, pela Lei 11.719, quando se garantiu a todos os réus de processos criminais o direito de terem seu interrogatório realizado como ato final da instrução processual.

Na prática, isso significa que o réu e a sua defesa constituída possuem a possibilidade de entrar em contato com todas as provas produzidas ao longo do processo e só então darem a sua versão dos fatos em juízo. Definir essa ordem não é, portanto, apenas um procedimento burocrático, mas é a maneira pela qual se garante que o acusado realize a sua defesa pessoal da forma que entender melhor, podendo dispor do direito a ficar em silêncio ou optando por dar a sua própria versão dos fatos.

É apenas através do “direito de falar por último” que o réu poderá contestar todas as provas apresentadas pela acusação. Essa garantia não é nenhuma novidade quando se olha para o processo penal moderno mundial, e já está disposta na maior parte dos países ocidentais, como no ordenamento jurídico italiano, espanhol e alemão, apenas para citar alguns exemplos.

E no caso dos adolescentes infratores que são apreendidos pelo cometimento de ato infracional? É importante lembrar que, para todo aquele que possui entre 12 e 17 anos incompletos, o procedimento especial de apuração está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. No art. 186 do ECA, consta que, no primeiro ato do procedimento, após a formalização da acusação, que é chamado de “audiência de apresentação”, deverão comparecer “o adolescente, seus pais ou responsável”. Nesse momento, “a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado”.

Ou seja, a lei não dá “o direito de falar por último” ao adolescente que está sendo acusado de cometer um ilícito penal. Muito pelo contrário. Na prática, o que acontece em muitas delegacias do país, é que o adolescente é apreendido pela Polícia, internado provisoriamente na instituição responsável pelo cumprimento de medidas socioeducativas e muitas vezes já no dia seguinte é levado diante do juiz(a) para dar sua versão dos fatos, sempre acompanhado de um responsável e do defensor legal. Não há tempo hábil, portanto, para a efetivação de uma estratégia defensiva.

Essa disposição do ECA vem sendo criticada por entidades e profissionais que atuam na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, principalmente aqueles envolvidos com o tema da socioeducação. Há um entendimento compartilhado entre os especialistas no tema que, em que pese o procedimento de apuração de ato infracional deva ser respeitado em suas particularidades, essas especificidades devem servir tão somente à sua proteção como sujeito de direito em desenvolvimento. É inconcebível, portanto, aceitar que aos adolescentes seja conferido tratamento mais gravoso na comparação com o que ocorre no processo penal do adulto.

A flagrante ilegalidade em deixar de conferir ao adolescente a garantia que já, pelo menos desde 2008, está atestada aos adultos, finalmente pode estar com os dias contados. No último dia 5, foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal o Habeas Corpus n. 212693/PR pelo ministro Lewandowski. O HC foi impetrado pela Defensoria Pública do Paraná e pleiteava que, no caso concreto, fosse possibilitado aos adolescentes novo interrogatório ao final da instrução para que pudessem exercer de forma adequada a sua autodefesa, contrapondo as versões das testemunhas.

A decisão tem potencial para se tornar um marco, na medida em que o ministro assevera os argumentos defensivos, determinando a anulação da sentença condenatória, para que outra sentença seja proferida após a oitiva do adolescente como último ato da instrução. Ao longo da decisão, expõe-se a necessidade de conferir interpretação constitucional aos artigos do ECA, de modo que o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório sejam materializados através da garantia ao acusado de “trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou de calar-se, se entender necessário”.

Assim, ainda que se trate de procedimento de apuração infracional, na medida em que há a possibilidade de que seja aplicada sanção restritiva à liberdade ao final do procedimento, a decisão determina que a imputação só poderá ser fundamento para a sentença condenatória se o acusado tiver a oportunidade de contestar seu inteiro teor. Espera-se que, a partir da consolidação desse entendimento nas instâncias inferiores, o procedimento de apuração de ato infracional vá aos poucos abandonando os traços de “menorismo” que ainda lhe atravessam, sobretudo nessa insistência de alguns atores jurídicos em entender que garantias processuais são dispensáveis quando se trata da aplicação de medida socioeducativa.

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