Profissão Polícia 29/10/2025

Nós, policiais ou não, e a Reforma Administrativa (PEC 38): quem precisa de inimigos? (Parte I)

A Proposta de Emenda Constitucional engessa sobremaneira as possibilidades de aumento salarial do funcionalismo, desrespeitando frontalmente as categorias policiais que já atravessam anos de defasagem remuneratória

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Lívio José Lima-e-Rocha

Investigador de Polícia e professor de Gestão Pública na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre (FGV) e doutorando (UFABC) em gestão e políticas públicas. Pesquisador em Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie). Associado sênior e conselheiro fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

“Dourar a pílula” é uma expressão popular com origem no hábito de farmacêuticos do passado de envolver remédios amargos em camadas douradas ou açucaradas para diminuir a rejeição. Em tese, remédios servem para melhorar a saúde. No caso da PEC 38/2025, a atual proposta de Reforma Administrativa, a pílula é mais parecida com um veneno elegantemente embalado. A proposta não visa melhorar a condição dos servidores públicos, incluindo os profissionais da segurança pública. Seu objetivo central é precarizar o serviço público.

Primeiro, vamos retirar alguns elefantes da sala. Nos anos 90, em uma época de poucos canais de TV, os governos veiculavam, com frequência próxima à lavagem cerebral, propagandas que comparavam a gestão pública a um elefante: grande, desajeitado e um obstáculo ao desenvolvimento do país. Reduziam uma questão complexa a uma lógica binária: público = ruim; privado = bom. Hoje, sabemos que o objetivo era a chamada “privataria”: precarizar intencionalmente os serviços e seu funcionalismo para justificar privatizações e concessões lesivas ao Erário. Pensando bem, o que mudou desde então?

O segundo elefante é a confusão deliberada entre melhorar a gestão pública e precarizar o setor público. A PEC vende a precarização como se fosse melhoria. Para evitar uma revisão extensa da literatura, mantemos a discussão simples, porém não simplória: a sociedade quer uma administração pública melhor. Estudos da área sempre criticaram o mecanicismo (servidores como engrenagens sem visão do todo), o insulamento burocrático (tecnocratas isolados da realidade política) e os cargos comissionados usados para nepotismo e apadrinhamento. São problemas complexos, que exigem soluções igualmente complexas.

Agora que retiramos os principais elefantes da sala, vejamos o que a PEC 38/2025 tem para melhorar o trabalho na segurança pública.

Qualquer proposta séria de gestão começa por um diagnóstico preciso. Na segurança pública, ele é alarmante: baixa procura por cargos (algumas polícias estaduais precisaram abrir concurso três vezes no mesmo ano), evasão de aprovados (concursos com taxas de 10% a 20% de desistência) e, o mais grave, o adoecimento mental dos policiais. Conforme o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2025, o suicídio é a maior causa de morte entre policiais ano após ano. Trata-se do ponto final de um acúmulo de fatores, não de um ato repentino. Assim disposto esse cenário do trabalho policial, o que esperar de uma Reforma Administrativa? Esperamos o aperfeiçoamento de mecanismos de gestão de pessoas que estimulem o ingresso, permanência saudável e progressão funcional de quem decide ser policial. Não é o caso da PEC 38/2025.

Começando pelo básico: salário. Assim como na política de arcabouço fiscal, a PEC engessa sobremaneira as possibilidades de aumento salarial do funcionalismo, desrespeitando frontalmente as categorias policiais que já atravessam anos de defasagem  remuneratória, como boa parte dos policiais estaduais, especialmente aqueles que estão nos últimos lugares do ranking nacional da categoria. O município ou Estado que teve recorde de arrecadação poderá repassar algo para os policiais? Não pode. O município ou Estado precisa melhorar o salário inicial dos policiais para reduzir a evasão das carreiras. Pode aumentar? Não pode. Uma organização policial está com defasagem decorrente de longos períodos sem contratação e um governador resolve repor o máximo de policiais em um concurso público. Pode? Não, não pode ter concurso que tenha vagas além de 5% do total dos cargos.

O segundo problema para os policiais é o foco da PEC 38/2025 no que vamos nos referir como política de bonificação: inclui cumprimento de metas, avaliação periódica de desempenhos, regras de bonificação por resultado e afins. Novamente: problemas complexos exigem soluções complexas. Não há demanda por  soluções simplórias como as propostas pelo texto da PEC 38/2025. Alguém está defendendo que não deve haver avaliação de desempenho? Ninguém. Mas existe uma distância entre ter avaliação que vise combater a inércia e a avaliação que force um ritmo de trabalho nada saudável. Se a PEC já veda a negociação salarial da categoria, restará ao policial investir na tentativa de alcançar a bonificação por resultado. Lembram-se de como anda a saúde mental dos policiais? Segundo a PEC, o policial que se afastar por período superior aos 30 dias anuais de férias não receberá a bonificação pela qual faz jus. Por conseguinte, se gozar de um segundo período de férias (aliás, a PEC PROÍBE mais de 30 dias férias no período anual) ou afastar-se em licença-maternidade, licença-paternidade ou para tratar da saúde, nada de bônus.

Um dos mecanismos para reter profissionais é a progressão horizontal: o salário melhora com o tempo de serviço, independentemente de promoções. Já a progressão vertical ocorre via concurso interno, para quem almeja maiores responsabilidades hierárquicas. Ambas são complementares, não excludentes. Novamente, lembrem-se da saúde mental: muitos buscam estabilidade e qualidade de vida, sem ambição de comando. Pela PEC 38/2025, que extingue a progressão horizontal, um policial com 20 anos de carreira pode acabar ganhando o mesmo que um recém-ingressado.

A PEC 38/2025 contém outros ataques ao trabalho policial. Discorreremos sobre esse pontos futuramente.

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