Andréa Lucas Fagundes
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas/UFRGS, cujo tema da tese foi: "A Polícia Federal e o combate à corrupção: transformação discursiva e mudança institucional endógena"
A atuação do Departamento de Polícia Federal no combate à corrupção no Brasil é tida como uma importante inovação institucional. Contudo, a compreensão de como se deu o desenvolvimento da Polícia Federal (PF) do ponto de vista endógeno tem sido pouco discutida. Complementarmente às capacidades exógenas de desenvolvimento, as capacidades endógenas, voltadas à (re)organização da PF são o foco de análise realizada nos níveis operacional, organizacional e político da instituição.
Como mencionado, parte das mudanças ocorridas na PF é claramente exógena, uma vez que dependem de decisões dos Poderes Executivo e Legislativo e de esforços envolvendo outras instituições da rede de accountability. Há mudanças exógenas que envolvem decisões do Poder Executivo ligadas a aumento de orçamento, concursos, salários, já descritas por alguns autores (ARANTES, 2010, 2011a, 2021; ARANTES e MOREIRA 2019; PRAÇA, 2017; AZEVEDO e PILAU, 2018). Com efeito, especialmente a partir de 2003 houve expressivos incrementos na PF em relação ao quadro de pessoal, às dotações orçamentárias, aos equipamentos e aos salários de seus servidores. Embora esses fatores de dependência exógena claramente tenham importância, essa parece ser apenas uma parte (importante) da explicação para o desenvolvimento institucional do órgão no front anticorrupção.
O argumento é que o processo de mudança institucional endógena que habilitou a PF a abordar a corrupção em suas investigações derivou do desenvolvimento de uma expertise que inicialmente não fora pensada para esses casos, mas que gradativamente foi utilizada para esse fim. Ou seja, ao buscar combater o crime organizado de traficantes internacionais de drogas, a PF passou a atuar no combate à lavagem de dinheiro, que, por sua vez, permitiu à instituição também atuar no combate à corrupção. Para além do incremento de recursos alocados à instituição na primeira década dos anos 2000, a partir de 2011 houve a priorização do enfrentamento à corrupção pela instituição, fazendo com que novas mudanças endógenas passassem a acontecer diretamente para esse fim.
A ideia de que a mudança endógena se dá de maneira incremental ao longo do tempo foi desenvolvida por meio da análise da cronologia da mudança endógena na PF e o combate à corrupção. Ou seja, as capacidades internas (endógenas) desenvolvidas nos níveis operacional, organizacional e político da instituição sofreram mudanças nem sempre de forma uniforme e equilibrada nos últimos 30 anos.
Assim, nos anos 1990, no nível operacional a mudança está relacionada com a atuação da PF e a necessidade de implementar novas formas de investigação. Já no nível organizacional, a necessidade tende à implantação de profissionalização/gestão e modernização – tanto de estrutura quanto de pessoal –, que se mostrou necessária para que o nível operacional se desenvolvesse. Por outro lado, além do esforço e mobilização interna para a aprovação de fundo para a modernização da PF, o nível político se manifestou endogenamente nesse período, pela atuação de representações sindicais que tiveram papel na reinvindicação de mudanças voltadas a melhorias na remuneração, condições de trabalho e carreira dos policiais federais.
As mudanças endógenas na primeira década dos anos 2000 foram pautadas pela atuação da PF voltada ao combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, a capacidade de investigação passou a ser uma capacidade endógena, de cunho operacional da Polícia Federal e que, junto a aspectos organizacionais que começaram a ser desenvolvidos no final da década de 1990 e tem continuidade ao longo dos anos 2000, tendem a fortalecer a imagem institucional da PF, tanto interna quanto externamente. O apoio político para a continuidade e desenvolvimento (ARANTES, 2021) da mudança endógena, encontrado nesse período, aliado às ideias que vinham sendo implementadas, deu à Polícia Federal oportunidade de apresentar resultados e aumento de sua atuação em diversas áreas, dentre elas o combate à corrupção, por meio das investigações sobre lavagem de dinheiro, muitas delas originando grandes operações.
Na última década várias foram as mudanças ocorridas na PF e em sua atuação como polícia judiciária. Além da transformação ocorrida em sua estrutura, mudanças incrementais adotadas pela PF no nível organizacional ao longo da década foram significativas para sua atuação no combate à corrupção, como a especialização e formação dos quadros. Em nível operacional, a diretriz interna dada pela Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado – Dicor a respeito da priorização das investigações policiais ligadas a crimes de desvio de recursos públicos e, posteriormente, pela deflagração da Operação Lava Jato e sua repercussão são fundamentais para atuação no combate à corrupção. Nesse período, o nível político também apresentou diversas dinâmicas de adequação da instituição, seja por questões ligadas à atuação de grupos da PF que se convergem em decisões legais, seja por disputas sindicais ou pela articulação com os demais órgãos do sistema de accountabilitiy e, também, pelas repercussões de sua atuação na Lava Jato junto ao sistema político.
Desta forma, o enfrentamento à corrupção nunca foi ausente na Polícia Federal, mas ele era indireto e, quando direto, era focado em petty corruption. Em um segundo momento, o enfrentamento à corrupção pela PF era mais próximo, mas ainda não tão direto (oblíquo), pois o foco era a lavagem de dinheiro e crime organizado. No terceiro momento, via investigações de crimes de desvio de recursos públicos, a abordagem é direta e frontal. É preciso reconhecer que somente com o tempo é que o escopo dos crimes cometidos pelas organizações criminosas ocultados pela lavagem foi se ampliando do tráfico de drogas em direção à corrupção, passando pelo combate à lavagem de dinheiro. Trata-se de um processo de aprendizagem institucional que se transfere de um crime para outro, pois, em meio às práticas das organizações criminosas, encontra-se corrupção, mas também tráfico de drogas, terrorismo e afins.
Assim, é possível concluir que, além dos fatores exógenos já explorados por diversos autores, o aumento significativo na atuação da Polícia Federal no combate à corrupção se deu também pela mudança endógena, o que não aconteceu de forma linear e a possível explicação não é apenas exógena ou endógena, mas um processo de retroalimentação.