Mortes decorrentes de intervenção policial e o julgamento de policiais no Júri na cidade de São Paulo
Constrangimento e medo de retaliação em caso de eventual condenação são sentimentos presentes no Tribunal do Júri, junto à insegurança do jurado quanto à sua exposição e identificação
Débora Nachmanowicz de Lima
Advogada e mestre em criminologia e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Não é novidade que os números da letalidade policial no Estado e cidade de São Paulo são altos (correspondendo a cerca de 20% das mortes violentas intencionais) e, após alguns anos de redução (2021-2023), estão, em 2024, novamente em ascensão[1]. Mas quantos policiais militares[2] (PMs) são efetivamente condenados no Tribunal do Júri por homicídios dolosos contra a vida? Não localizei número exato para o município de São Paulo, mas apenas pesquisas esparsas de outras cidades que sugeriam um resultado de não responsabilização dos policiais pela Justiça Comum.
Ter esse dado era importante para a dissertação intitulada “’Assim o prometo’: um retrato sobre os jurados e o julgamento de policiais militares no Tribunal do Júri em São Paulo”. O objetivo central era pesquisar o jurado paulistano – descrevendo e analisando o funcionamento, a formação e a composição do corpo de jurados –, já que eles serão os juízes dos casos de PMs, além de examinar as condições e contingências do julgamento de PMs no Júri.
Solicitei, então, ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que me fossem indicados os procedimentos de homicídio com réu PM da cidade de São Paulo entre 2015 e 2020. Ao final da análise (data-base 29/05/2024), apurei que cerca de 5% dos PMs envolvidos em mortes de civis chegam a ser julgados pela sociedade civil de São Paulo, representada pelos jurados.
Foram instaurados 1293 procedimentos para apuração de mortes de civis por PMs (não restritos a intervenções policiais) nos cinco Tribunais do Júri da cidade de São Paulo, dos quais 1102 foram arquivados. Assim, em semelhança a pesquisas anteriores[3], identifiquei uma baixa porcentagem de denúncia, 9,4% (122), que pode decorrer não só de mera conivência do Ministério Público, mas de baixa margem para elementos investigativos que sustentem uma acusação, às vezes decorrente de uma investigação morosa ou da eventual inexistência de provas (imagens ou testemunhas, por exemplo).
Por outro lado, a opção judicial de impronunciar (8), desclassificar (4) ou absolver sumariamente (16) os réus que foram denunciados é ainda mais questionável. Ainda que, ao final da primeira fase de instrução, o Ministério Público (MP) tenha pedido a impronúncia ou absolvição em praticamente metade desses casos, nos demais, mesmo quando a acusação sustentou a necessidade de os policiais serem julgados pelo Conselho de Sentença, o Juízo decidiu favoravelmente ao réu. Por fim, dos 60 processos que foram a Júri, houve 21 absolvições, 2 desclassificações e 20 condenações, sendo que 11 ainda aguardavam julgamento. Assim, dentre os 72 casos denunciados e concluídos na data-base, houve 2,8% processos com condenação.
Apesar das 20 condenações, é relevante notar que quatro delas se referem a um mesmo réu, e que outras quatro condenações se relacionam a policiais que mataram em situação de confronto (intervenção policial, em serviço ou não) –excluído o réu referido acima. Das 21 absolvições, dois terços (14) foram em situações de confronto. Sendo assim, confirmei que os jurados, além dos juízes togados[4], absolvem a maioria dos PMs envolvidos em mortes abrangidas pelas estatísticas da letalidade policial. Prevalece, portanto, a aparente concordância com a justificação das mortes, que é, predominantemente, de legítima defesa – real ou putativa, sendo a última um argumento em ascensão, especialmente em casos em que há gravações do momento dos disparos.
Não obstante, as absolvições por jurados não decorrem, exclusivamente, de mera conivência com as ações policiais[5] pois, ao avaliar as condições de atuação e mecanismos presentes durante o julgamento no Tribunal do Júri, identifiquei vínculos de mediação que entendo contribuírem para algumas absolvições de casos em que a morte decorreu de atitudes policiais arbitrárias, abusivas ou “erradas” (um inocente morto ou desobediência aos próprios protocolos operacionais da polícia).
Tendo em vista o que apurei, por meio de questionários, entrevistas e observação, julgamentos em que a plateia está cheia de policiais militares tendem a resultados absolutórios. Algum constrangimento e medo de retaliação em caso de eventual condenação são sentimentos presentes, junto à insegurança do jurado quanto à sua exposição e identificação (eventualmente podem ser gravados pela plateia ou pelos advogados sem que haja um controle judicial restrito), e que se somam a aspectos emocionais do julgamento, como um réu policial que chora copiosamente durante o interrogatório, e/ou sua família, na plateia, também emocionada, além da utilização de argumentos dos advogados de experiência pessoal (de quando eram policiais). Esses elementos podem ter prevalência sobre os fatos, haja vista que o contato do jurado com o processo é pouco e restrito ao que acusação e defesa escolhem expor. Dúvidas e incertezas nem sempre são esclarecidas, de forma que entendo ser necessário um incremento na cognição do processo pelo jurado.
Tais dados, ainda que tão relevantes para o campo de pesquisa da segurança pública, são apenas um recorte da dissertação, em que tive a oportunidade de correlacionar informações de diversas fontes, contribuindo para o estudo de temáticas correlatas ao sistema de justiça e à letalidade policial.