Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Recentemente, com a publicação do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os dados sobre violência no Brasil provocaram debates além do esperado. Com base nos dados do Anuário, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, foi questionado em entrevista à Globonews sobre a letalidade policial no estado da Bahia sob sua gestão enquanto governador, sendo ainda relatado pelo entrevistador que, em 2023, houve 1.400 óbitos por intervenção policial e que, em análise comparada, é maior que a letalidade policial dos EUA. Segundo o Ministro, há a necessidade de padronizar os registros de mortes pelos entes federados e que “não reconhece publicações de ONGs que fazem publicações de Segurança” por comparar coisas diferentes. Há questões pertinentes, neste sentido: quem pode falar sobre segurança pública e ser reconhecido? A análise sobre letalidade policial mudaria o problema com dados diferentes? Há como mudar?
Inicio pela última questão: há como mudar o procedimento de registro de mortes violentas no Brasil? Logicamente que sim, e o ministro está certo em propor tal medida. Todavia, há a necessidade de normatização e controles internos e externos, pois o debate é referente às Mortes Violentas Intencionais, inclusive a letalidade policial. Para tanto, há a necessidade de desenvolver Protocolos de atendimentos de ocorrências, incluindo isolamento e cadeia de custódia de materiais; padronização das informações necessárias; fluxos de informações e compartilhamento dos dados entre as instituições, entre outras. Assim, os dados devem ser incrementados de acordo com o avanço nos ritos processuais policiais e judiciais, de atendimento pelo policiamento ostensivo à investigação, à denúncia e ao inquérito judicial, de forma que o que foi revelado no inquérito judicial repercuta nos dados iniciais e no processo de análise, possibilitando que as informações sobre vitimização por racismo, homofobia, entre outras, reflitam-se nos dados anuais.
Nesta implementação, deve-se considerar que há uma disputa dentro do campo da segurança pública, pois a produção dos dados ainda está vinculada à produção do trabalho institucional. Os capitais políticos, sociais e simbólicos que podem ditar a produção do capital cultural no campo estão diretamente relacionados, também, à lógica da produção de segurança pública da política vigente e os dados estão direcionados para tal reconhecimento. Dados, informações e conhecimento sobre o objeto resultam em poder. A unificação dos fluxos de informação conduz para diluição de parte desse poder.
Além disso, quando o ministro questiona a “mistura” dos dados sobre letalidade policial, ele se refere às mortes produzidas que são “próprias do trabalho”, em sua interpretação, que estão dentro da lógica de combate ou guerra à criminalidade com as mortes que podem ser “acidente” de trabalho. Neste sentido, para pontuar a nossa segunda questão, os dados mudariam sobre letalidade policial, mesmo que ambas sejam violentas, com consequências de sofrimento no tempo e no espaço para as testemunhas, para as pessoas que convivem com o ambiente violento e para os trabalhadores policiais. Aparentemente, os termos “letalidade policial” e “morte violenta intencional” não devem ser considerados quando é na lógica própria do trabalho.
Já a primeira questão considero tão grave quanto as outras, pois envolve a participação da sociedade civil nas ações governamentais e, portanto, um dos pilares da democracia, porque demanda diálogo. Considerar a análise dos dados pela Sociedade Civil faz parte da accountability e da democracia, pois movimentos sociais têm diferentes recursos para que uma questão social seja reconhecida como objeto de políticas públicas e entre elas há a produção de dados. Por exemplo, os dados sobre violência doméstica e contra mulher foram, inicialmente, objeto de debates e sistematização da sociedade civil e, posteriormente, foram incorporados como variável a ser considerada pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e, por fim, tornaram-se objeto de políticas de segurança pública, como tipificação penal, construção de redes de acolhimento, treinamento e atendimento policial especializado, entre outros. No caso específico, os dados produzidos pela Sociedade Civil, pelo FBSP, lidos como dados de ONG pelo ministro, já demonstram a importância, porque fustigaram e fomentaram debates e possíveis ações governamentais com o reconhecimento da variável e a possível padronização da produção estatal.
A recusa ao reconhecer os dados produzidos pela Sociedade Civil sem que haja um contraponto pode ensejar a hipótese que para os diversos governos a Letalidade Policial faz parte da política de segurança, porque faz parte do combate ao criminoso e não da diminuição da criminalidade. Pode ensejar ainda que a produção dos dados se apresenta como uma Caixa de Pandora para os governos, colocando em relevo as políticas, os recursos utilizados, as ações e operações, os diversos tipos de interesses e os resultados obtidos. E, infelizmente, enseja que neste conflito pelo poder de dar nome às mortes violentas, às mortes legítimas, às situações violentas e aos lugares violentos, o ministro não considera sequer a possibilidade da Sociedade Civil dizer o que é ou não violento e questionar a legitimidade das mortes produzidas pelo Estado.