Múltiplas Vozes 24/08/2022

Mirando o abismo: violência letal e saúde mental de brasileiros armados

A violência extremada que amedronta alguns indivíduos, ao que parece, excita outros a se lançarem ao encontro do incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais

Compartilhe

Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto

Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apresentam um cenário favorável no Brasil, que informa a queda da letalidade e da vitimização policial no ano de 2021. A letalidade caiu 4,9% em relação ao ano anterior. O menor patamar em quatro anos. Não obstante, o número de pessoas mortas por policiais civis e militares permanece elevado, mormente o de jovens negros (99,2% das vítimas). A letalidade das polícias brasileiras abrange 12,9% das mortes violentas intencionais do país e totaliza 6.145 mortes, o que corresponde à média de 17 mortes por dia causadas por policiais. Seguindo a mesma tendência de queda, o número de policiais assassinados sofreu redução em 17%. Foram 183 registros no ano, contra 221 em 2020. A maioria das mortes ocorreu fora do serviço (77,4%).

Em oposição aos dados alvissareiros, o suicídio de policiais, tanto civis quanto militares, cresceu 55,4%. Os dados se referem somente a policiais da ativa. Em 2021, 80 policiais militares e 21 policiais civis cometeram suicídio. Nesse mesmo ano, 34 policiais militares e 9 policiais civis morreram em serviço. Ou seja, em 2021 mais policiais se suicidaram do que foram a óbito em confronto, no policiamento.

No amontoado das cifras lúgubres, resta evidente que a segurança pública no Brasil vive um drama silencioso: a saúde mental dos policiais.

Faz poucas semanas (14 e 15.07.2022), um policial militar cometeu a chacina que matou nove pessoas, nas cidades de Toledo e Céu Azul, no oeste do Paraná, ao que tudo indica motivada pelo fim do relacionamento conjugal. Entre os mortos: a esposa e a filha do primeiro relacionamento, uma adolescente de 12 anos; a mãe e o próprio irmão; na casa dos avós maternos, a filha e o filho, a menina tinha 8 e o menino 4 anos; 2 jovens desconhecidos que caminhavam pela rua, um de 16 e outro de 19 anos. Depois das execuções, enviou um áudio pedindo desculpas para o que restou da família e cometeu suicídio. Algoz e vítima.

A arma de fogo utilizada na chacina pertence à Polícia Militar do Paraná (PMPR), na qual ele trabalhava havia 12 anos. Conceituado por superiores como excelente profissional, exercia função de confiança. O pronunciamento oficial da PMPR comunica: “O policial militar que prestava serviços no 19º Batalhão em Toledo não tinha histórico que pudesse indicar problemas psicológicos e atuava como motorista do Coordenador do Policiamento da Unidade”.

Decerto que o trabalho com a violência exige do policial habilidade, sorte e um permanente estado de alerta primordial para que se mantenha vivo nas ruas. Wilquerson Sandes observa que, no exercício da atividade de policiamento, os policiais – em sua maioria profissionais competentes e cumpridores da lei – precisam estar sempre prontos para sobreviver ao ataque de um agressor, ao tormento dos processos administrativos e judiciais e a conviver com os traumas psicológicos decorrentes do dia a dia.

O preocupante é pensar que, na PMPR, apesar de contar com o serviço de apoio psicossocial, não se notou qualquer indicativo de problemas psicológicos que possibilitasse antever e evitar a violência bestial.

À parte do que sucedeu no Paraná, é irrefutável que existam nas fileiras das organizações policiais indivíduos com inclinação homicida, que encontram na própria corporação e em parcela da população amedrontada pela criminalidade o apoio e a condescendência que necessitam para dar vazão a sanha mortal, no exercício do necropoder.

Diferente dos suicídios, a proeminência da letalidade recidiva de alguns policiais não é logo associada ao adoecimento mental, ainda que por vezes denote traços do que os psicólogos chamam na literatura clínica de “tríade obscura” (maquiavelismo, narcisismo e psicopatia). Ao avesso, no Brasil, policiais capazes de matar são tidos como valentes e detentores de elevado prestígio social, dentro e fora da caserna.

Vale ressaltar que as forças policiais aplicam testes psicotécnicos que auxiliam os processos seletivos. Primam pela formação profissional. Seguem a hierarquia de comando. Estabelecem normas disciplinares e procedimentos-padrão para orientar as condutas. Contam com serviços de apoio psicossocial. Ademais, corregedorias, ouvidorias e promotorias de Justiça vigiam o uso da força. Enfim, o comportamento abusivo do policial, quando identificado, é punido administrativamente ou na esfera penal.

Não bastasse a complexidade da violência letal que abarca os policiais, mais e mais brasileiros estão tendo acesso a armas de fogo – o contingente de colecionadores de armas, atiradores profissionais e caçadores (CAC) que cresceu expressivamente no Brasil, na gestão do presidente Jair Bolsonaro.

Atualmente, o número de pessoas cadastradas como CAC já supera o total de policiais militares (406 mil) e de integrantes das forças armadas (360 mil), em todo o país. São 2,8 milhões de armas registradas de particulares. Outras 692,5 mil armas pertencem a cidadãos comuns com autorização para posse ou porte. Clubes de tiro cresceram exponencialmente em todos os estados, muitos com forte inspiração nacionalista e alinhamento político ao atual presidente, armamentista, candidato à reeleição. Entendem que o uso da força, isto é, da arma de fogo, é o melhor mecanismo de defesa da vida, da liberdade e do patrimônio.

Mas, se no cotidiano uso da arma de fogo, os nossos policiais estão entre os agentes da lei que mais matam, que mais morrem e que mais se matam, apesar de refreados por mecanismos de controle social consolidados e de contarem com estruturas de apoio psicossocial à disposição, o que esperar, então, das relações interpessoais da legião armada que cresceu prevalecida do abrandamento da lei e do afrouxamento dos pré-requisitos psicológicos?

Em boa parte, são pretensos cidadãos de bem – nem todos – armados, treinados, mas ideologicamente aparelhados e de preparo emocional incerto, ansiosos para “cancelar CPF” na sonhada limpeza social. A violência extremada que amedronta alguns indivíduos, ao que parece, excita outros a se lançarem ao encontro do incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais. Mais fundo o precipício, maior a emoção.

Os apaixonados por armas bem sabem que os homens criam a ferramenta letal e a arma de fogo recria os homens, transformando-os em maiores, mais fortes e valentes; talvez seja esse o motivo do encanto. Porém, conforme já se viu, há outros efeitos, deletérios.

Das tensões e inquietações corriqueiras da vida hodierna em nossa sociedade – particularmente marcada pelo imenso legado de perniciosa iniquidade – latejam assassinatos e baleamentos em brigas de trânsito, em  discussões familiares ou no manuseio inadequado da arma de fogo por crianças e adultos.

O gênio literário russo Fiódor Dostoiévski, revolvendo a profundidade da alma humana na obra-prima da sua narrativa fantástica “A dócil” (1876), escreveu: “Dizem que aqueles que estão nas alturas como que são atraídos por si mesmos para baixo, para o abismo. Creio que muitos suicídios e homicídios só foram levados a cabo porque o revólver já estava na mão. Aqui também há um abismo, aqui também há um declive de quarenta e cinco graus, do qual é impossível não escorregar, e algo incita irresistivelmente a puxar o gatilho.”

O abismo parece ainda mais íngreme frente ao pleito eleitoral que se aproxima e dos interesses e afetos que ele arregimenta. Melhor seria menos armas e mais espíritos desarmados.

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES