Gustavo Bernardes
Advogado, especialista em psicologia social pela UFRGS, mestrando em Sociologia no PPGSol/UnB, pesquisador do LabGEPEN/UnB
A experiência da prisão é marcada pela negação de direitos básicos e pela intensificação de precariedades. Se o encarceramento no Brasil já significa superlotação, violência e condições degradantes, os obstáculos se multiplicam quando o assunto é saúde mental. Entre os homens privados de liberdade, a dificuldade de pedir ajuda diante de um sofrimento psíquico não é apenas produto da precariedade do sistema, mas está intrinsecamente relacionada às normas de masculinidade que atravessam o cotidiano carcerário.
Segundo Butler (2005), o sexo não se limita às distinções anatômicas, pois ultrapassa a mera dimensão biológica do corpo. Trata-se de uma construção normativa da cultura que atua sobre a materialidade corporal, impondo-se como um regime regulador que define, delimita e diferencia os corpos. Essa normatividade cultural, portanto, não apenas descreve os corpos, mas os governa e dociliza, operando como um dispositivo de poder que produz e controla as formas possíveis de existência corporal e de gênero.
Silva et al. (2021) dizem que os discursos e práticas da masculinidade tradicional operam como uma das principais barreiras para que os homens reconheçam, expressem e busquem cuidado para seu sofrimento mental. Segundo os autores, essas normas sociais moldam expectativas de força, invulnerabilidade emocional e autossuficiência, produzindo um vácuo simbólico no qual vulnerabilidades e angústias são percebidas como falhas de caráter.
O estudo de Campos et al. (2017) corrobora achados encontrados em estudos recentes que afirmam que uma das maiores vulnerabilidades da população masculina relacionada à saúde mental diz respeito à grande dificuldade que os homens têm de buscar ajuda para seus sofrimentos psíquicos, o que os leva a acessar tratamento apenas em condições de saúde física ou mental mais agravadas.
Na cultura ocidental, os homens são subjetivados num ideal hegemônico de virilidade. Essa masculinidade hegemônica pressiona o sujeito masculino a mascarar seus sentimentos, suprimindo a expressão afetiva que revelaria fragilidade, o que os leva a raramente chorar em público. Expressar-se afetivamente é interpretado pelo patriarcado como próprio de “frescos”, característica rejeitada pelo masculino.
Portanto, é necessário que os sujeitos convertam fragilidades em condutas “toleráveis”, como agressividade, comportamentos de risco ou controle excessivo sobre o ambiente, em vez de admitir fraqueza e pedir apoio.
A masculinidade como barreira ao cuidado
As pesquisas sobre saúde do homem apontam que o modelo hegemônico de masculinidade constrói sujeitos resistentes ao autocuidado, associando o reconhecimento da dor, da fragilidade ou da necessidade de ajuda a sinais de fraqueza. Esse padrão cultural, reforçado em ambientes de violência como as prisões, transforma o sofrimento psíquico em algo a ser ocultado ou, quando expresso, manifestado em atos de agressividade e indisciplina.
Nardi e Santos (2014) destacam que, em um espaço que já é produtor de “morte social”, a reafirmação da virilidade torna-se imperativo para sobreviver. Ser homem, no cárcere, implica “não falar de sentimentos, fraquezas ou medos” e, sobretudo, não se diferenciar do grupo. Assim, a agressividade aparece como linguagem possível para a expressão do sofrimento, reforçando a associação entre masculinidade e violência.
Silva et al. (2021) enfatizam que essa dinâmica não é apenas individual, mas também se reflete nas instituições de saúde e nos modos de oferta de cuidado. Os serviços tendem, muitas vezes, a não acolher as formas como os homens manifestam sofrimento, seja por desconfiança frente ao relato emocional, seja por priorizar sintomas físicos ou “queixas somáticas”. Assim, o cuidado singular (a clínica individual) corre o risco de reforçar o invisível: aquilo que o homem não verbaliza, seja por vergonha, por medo de desqualificação, por autoestima fragilizada, permanece subdiagnosticado ou mal entendido.
A resposta do sistema: mais controle
O que poderia ser compreendido como sintoma de sofrimento psíquico recebe, no cotidiano prisional, tratamento disciplinar. A agressividade dos homens encarcerados, longe de ser interpretada como um pedido de ajuda, é tomada como risco à segurança e respondida com isolamento, repressão e intensificação da vigilância.
Essa lógica aprofunda o ciclo de adoecimento: quanto mais o sujeito expressa sofrimento de forma violenta, mais o sistema reforça dispositivos de contenção que ampliam a violência institucional.
A literatura mostra que a saúde mental é vista de modo secundário nas políticas prisionais. O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (2003) e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (2014) reconhecem a necessidade de cuidado integral, mas a prática cotidiana ainda privilegia ações biomédicas, curativas e centradas no corpo físico. O sofrimento psíquico permanece invisível, ou tratado apenas em situações-limite.
O paradoxo da virilidade
O silêncio diante do adoecimento mental se conecta a uma contradição: se, por um lado, os homens presos se mostram vulneráveis às doenças e à violência institucional, por outro, são compelidos a sustentar um ideal de virilidade que nega a fragilidade e impede a busca por cuidado. Como observa Mota (2017), o cárcere se apresenta como um “território eminentemente masculino”, onde práticas machistas tanto dos profissionais de saúde quanto dos internos reforçam a dificuldade de reconhecimento do sofrimento e a baixa adesão às práticas de cuidado.
Essa engrenagem produz uma dupla vulnerabilidade: a de ser homem em uma sociedade que valoriza a virilidade e a de ser preso em um sistema que nega direitos básicos. Como consequência, o sofrimento mental se transforma em violência, seja contra si, seja contra os outros.
Considerações finais
Pensar a relação entre masculinidade, saúde mental e prisão exige ir além da leitura individualizada do adoecimento. Trata-se de compreender como normas de gênero, dispositivos disciplinares e políticas de saúde se entrelaçam para produzir um cenário no qual pedir ajuda é quase impossível. A agressividade não é apenas expressão de violência, mas também linguagem de um sofrimento silenciado.
Se a resposta institucional continuar sendo apenas o reforço do controle, estaremos diante de um círculo vicioso: homens que não pedem ajuda porque não podem parecer fracos; que expressam sofrimento por meio da agressividade; e que recebem, como resposta, ainda mais repressão.
Silva et al. (2021) argumentam que romper esse ciclo de silenciamento depende de ações articuladas entre o simbólico e o concreto: é preciso promover um acolhimento sensível ao gênero, capacitando profissionais de saúde para identificar expressões específicas de sofrimento masculino; criar espaços coletivos de diálogo que permitam aos homens compartilhar emoções e fragilidades; investir em políticas públicas e campanhas que desnaturalizem a ideia de que pedir ajuda é sinal de fraqueza; e integrar o cuidado individual e o coletivo, valorizando iniciativas comunitárias e territoriais.
Assim, enfrentar o silenciamento dos homens implica reconfigurar o modo como a sociedade compreende o cuidado e construir uma cultura de saúde mental baseada na empatia, na escuta e no reconhecimento das múltiplas formas de ser homem.

