Múltiplas Vozes 19/10/2022

Marginalização múltipla: direito ao voto, cidadania e prisão provisória

Cerca de 77% dos eleitores privados de liberdade aptos a votar no primeiro turno de fato compareceram às seções e exerceram esse direito. Isso significa que apenas 1% dos presos votaram no primeiro turno

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João Vitor Rodrigues Loureiro

Doutor em Sociologia pela UnB. Pesquisador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais

Desde 2010, o Tribunal Superior Eleitoral, o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça, em esforço conjunto, viabilizaram a efetivação do direito ao voto de pessoas recolhidas em estabelecimentos penais e em unidades de internação de adolescentes. A publicação da Resolução nº 23.219, de 2 de março de 2010, passou a prever a instalação de seções eleitorais especiais nesses estabelecimentos.

Neste ano, cerca de 12 mil pessoas presas em estabelecimentos penais no país estavam aptas a votar. Possuem esse direito apenas aquelas pessoas que, além de ter situação eleitoral regular, não cumprem pena após decisão condenatória, ou seja, aguardam julgamento, embora presas. São os chamados presos provisórios. Em outras palavras, a Constituição estabelece que a suspensão dos direitos políticos é cabível somente aos condenados em ação criminal transitada em julgado enquanto durarem seus efeitos. Embora cerca de 29% do total de pessoas privadas de liberdade no Brasil sejam classificados como “presos provisórios”, o número deles aptos a votar é muito reduzido, tendo em vista uma completa ausência de documentação regular dessas pessoas – incluindo o título de eleitor – junto à administração penitenciária. Soma-se a isso, também, a dificuldade de compreensão e comum acordo entre a justiça eleitoral e as administrações penitenciárias em criar as seções especiais em todas as unidades prisionais nas quais se encontrem presos provisórios. A cifra é deste modo muito limitada: fica em torno de pouco mais que 5% dos presos provisórios (que no Brasil alcançam um total superior a 230 mil pessoas, de uma população de 820 mil pessoas presas no sistema prisional) habilitados a exercer esse direito.

Embora existam seções eleitorais “especiais” instaladas em unidades penais, o pleito eleitoral nelas funciona de modo nada diferente de uma seção do “mundo exterior”: os eleitores dessas unidades também depositam seus votos em candidatos e candidatas, votam em branco ou anulam votos. Nessas seções, pessoas também se abstêm, deixando de comparecer às urnas no dia da eleição. Em resumo, cerca de 77% dos eleitores privados de liberdade aptos a votar no primeiro turno de fato compareceram às seções e exerceram esse direito.

Enquanto as cifras são irrisórias – se muito, poderiam, no limite, fazer diferença na eleição de cargo majoritário com uma diferença excessivamente apertada, o que não parece ser comum em eleições de governadores, senadores e de presidente da República – o furor dos discursos nas redes sociais em torno do tema é nada desprezível.

Mais que associar tendências do eleitorado preso e suas preferências a candidatos, o que subjaz nesses discursos é uma associação peremptória entre criminalização e exercício de direitos. Vozes apressadas em dizer que “os criminosos” escolheram o candidato A ou B revelam, no fundo, um desprezo à própria noção de cidadania. Não é demais lembrar que nossa Constituição prevê como direito fundamental da pessoa humana, em seu art. 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”

Não é possível, numa sociedade que pretenda tornar direitos e garantias fundamentais um consistente pacto civilizatório contra a barbárie, admitir que absolutamente todas as prisões efetuadas pela polícia sejam infalível e impecavelmente justas, corretas, legais e necessárias. Essa premissa tornaria o trabalho de revisão judicial inteiramente desnecessário, e a justiça criminal, uma atividade irrelevante, atribuindo à polícia poderes de um mandato absoluto, inquestionável, considerado perfeito em 100% dos casos.

Os discursos sobre o exercício do direito ao voto revelam um profundo desprezo à absoluta precariedade da prisão provisória: rejeitam o exercício regular do direito ao voto por aquelas pessoas contra as quais não resta culpa, mas uma acusação, contra quem não há condenação judicial, mas social, contra a qual paira uma suspeita, e não uma certeza de desvio e uma condenação definitiva pela justiça.

Não se trata, aqui, de simplificar o tema como esses discursos furibundos insistem em fazer: pessoas livres ou presas são complexas, como em qualquer lugar do mundo. Sua condição transitória – presa ou livre – dificilmente pode ser causa explicativa suficiente para sua escolha eleitoral: pessoas possuem histórias de vida anteriores à prisão, valores e preferências políticas compartilhados com suas comunidades de origem, e claro, também dentro da própria prisão.

Os discursos raivosos, lugares-comuns em redes sociais, ao afirmarem que “bandidos preferem candidatos de esquerda”, ou que “preso não devia votar” expressam uma cultura enraizada de desprezo à cidadania, que classifica pessoas entre cidadãos e não cidadãos. Não raro, essas pessoas absorvidas pelo sistema penal, pouco escolarizadas, negras, sem assistência judicial adequada e que ainda aguardam julgamento, permanecem presas e vivenciando múltiplas marginalizações promovidas pela racionalidade punitiva: seja à margem do sistema de justiça, no aguardo de definição sobre sua própria liberdade, seja à margem do sistema eleitoral, no aguardo de exercerem um direito constitucional de que são titulares, enquanto cidadãos em situação absolutamente precária, ditada pelos tempos da Justiça Criminal e pela boa vontade das administrações penitenciárias e da justiça eleitoral em garantir-lhes o efetivo exercício do direito de eleger seus representantes.

Em resumo, cerca de 77% dos eleitores privados de liberdade aptos a votar no primeiro turno de fato compareceram às seções e exerceram esse direito. Ou seja, apenas 1% dos presos votaram no primeiro turno.

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