Justiciamento x Justiça: o cartão postal às avessas
A percepção de ineficácia policial e a crescente insegurança levaram à organização de grupos de 'justiceiros'. Mas a abordagem vigilante pode intensificar a violência e a desordem, criando um ciclo de violência no qual a lei do mais forte prevalece sobre a justiça
Ariadne Natal
Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)
A Zona Sul do Rio de Janeiro, área que reúne os bairros com o metro quadrado mais caro da cidade, enfrenta atualmente um alarmante aumento da violência, marcado por uma série de assaltos e arrastões. Essa escalada levou à formação de grupos de vigilantes por moradores que se propõem a fazer justiça com as próprias mãos para reestabelecer a ordem local.
Há décadas, a cidade do Rio de Janeiro lida com desafios significativos em segurança pública, marcada por altas taxas de criminalidade e ação de grupos criminosos. Mas, recentemente, houve um agravamento nos crimes contra o patrimônio, especialmente em bairros de grande circulação, afetando sobremaneira a vida dos moradores e visitantes. Em 2023, Copacabana, um dos bairros mais emblemáticos, registrou um aumento de 25% em roubos e 23% em furtos em comparação a 2022, com um salto de 56% nos furtos a transeuntes.
A percepção de ineficácia policial e a crescente insegurança levaram à organização de grupos de ‘justiceiros’. Eles surgiram como uma resposta direta dos cidadãos ao sentimento de abandono pelas autoridades, buscando preencher um vácuo na segurança. Refletem a perda de confiança nas instituições de aplicação da lei e, em alguns casos, a frustração com a justiça formal, vista como lenta ou ineficiente. Organizados por meio de redes sociais, realizam desde patrulhas nas ruas até intervenções diretas. Já foram reportados incidentes como a detenção e agressão a um jovem suspeito de roubo e confrontos com pessoas consideradas suspeitas, sem provas concretas.
O fenômeno do justiciamento paralelo não é exatamente uma novidade na história da cidade, que já presenciou diversas manifestações de violência extrajudicial, desde linchamentos efêmeros até formas mais organizadas de vigilantismo. Em casos extremos, essas ações podem evoluir para grupos de extermínio ou até a formação de milícias. Apesar das diferenças em organização, planejamento, durabilidade, controle territorial, motivações e grau de institucionalização, essas ações têm em comum raízes em respostas distorcidas às falhas percebidas na segurança pública, desencadeando ciclos de violência que retroalimentam a desconfiança nas instituições legais.
Trata-se de um cenário que divide a comunidade. Enquanto alguns apoiam e creem que tais ações são necessárias para a proteção comunitária, outros as criticam por exacerbarem a violência e potencializarem injustiças, principalmente contra jovens negros de favelas.
Nesse sentido, é importante destacar que, embora o sentimento de vulnerabilidade e a necessidade de proteção sejam legítimos, justiça e justiciamento são respostas completamente distintas a esta situação. A justiça é a aplicação imparcial da lei por instituições oficiais, seguindo procedimentos legais e garantindo direitos como a presunção de inocência e o direito à defesa. Em contraste, o justiciamento, ou ‘justiça com as próprias mãos’, opera fora do sistema legal, muitas vezes baseado em emoções ou moralidade pessoal, e sem as salvaguardas do devido processo legal. A ausência de imparcialidade e garantias legais no justiciamento invariavelmente leva a injustiças e abusos, perpetuando ciclos de violência e minando a confiança nas instituições legais.
Politicamente, a questão gera controvérsia até mesmo dentro do partido de agenda conservadora que comanda o estado do Rio de Janeiro. De um lado, o governador do estado, Cláudio Castro (PL), busca desmobilizar as ações dos ‘justiceiros’, enfatizando que combater o crime é responsabilidade exclusiva da polícia e prometendo aumentar o efetivo em patrulhas nas ruas como forma de prevenção. Por outro lado, o deputado estadual Anderson Moraes (também do PL) propôs um projeto para legalizar esses grupos, por meio de um programa que integraria redes informais de vigilantes, compostos por praticantes de artes marciais ou ex-agentes de segurança pública ou privada, funcionando como organizações de apoio às atividades da polícia e dos órgãos de segurança pública em áreas com altas taxas de roubos e furtos.
A proposta de legalização desses grupos é problemática sob vários aspectos. O projeto desafia a noção de que o uso da força deve ser monopólio exclusivo das autoridades estatais. Permitir que civis atuem em segurança pública é reconhecer a absoluta falência estatal e institucionalizar o método faroeste. Além disso, apesar das lacunas e deficiências, os policiais recebem treinamento específico e estão sujeitos a um conjunto de protocolos, supervisão e responsabilidades, os quais são distintos dos de civis. Acrescenta-se a isso a tendência de grupos privados de atuar em defesa de interesses particulares, exacerbando problemas existentes de parcialidade e discriminação. Por fim, a legalização do vigilantismo levaria a uma escalada de violência sem precedentes, transformando-se em um obstáculo muito maior para o controle da criminalidade. A “solução“ tende a aprofundar o problema.
Do ponto de vista legal e ético, a atuação dos “justiceiros” desafia o Estado de Direito e é quase certa de resultar em injustiças e abuso de poder. A abordagem vigilante pode intensificar a violência e a desordem, criando um ciclo de violência no qual a lei do mais forte prevalece sobre a justiça. É emblemático que essa dinâmica de criminalidade violenta respondida com soluções ainda mais violentas e com parte de respaldo social aconteça justamente no principal cartão-postal do país. As areias e a bela orla de Copacabana refletem um dilema profundo e nunca plenamente resolvido sobre o controle do crime e o tipo de Estado que emerge das soluções adotadas.