Feminicídios e mortes violentas intencionais de mulheres na Amazônia Legal
Quando olhamos para os registros dos boletins de ocorrência produzidos pelas Polícias Civis, praticamente todos os crimes baseados no gênero são maiores nos estados da Amazônia Legal do que no restante do Brasil. A taxa de feminicídios nos municípios da Amazônia foi de 1,8 para cada 100 mil mulheres, 30,8% superior à média nacional
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Instituto Mãe Crioula
Embora a violência baseada em gênero seja um fenômeno que acontece no Brasil como um todo, ela não acomete as mulheres da mesma forma. Existem especificidades territoriais, sociais, econômicas ou raciais próprias nas lutas e na violência vivenciada por mulheres de áreas rurais, indígenas, quilombolas, migrantes, negras, entre outras diferenciações: cada um desses coletivos enfrenta opressões próprias. Essa é uma justificativa do porquê não podemos considerar o problema da violência contra a mulher como algo homogêneo.[1] Nesse sentido, é preciso mobilizar lupas próprias para entender as particularidades da violência e é esse esforço que fazemos no estudo Cartografias da Violência na Amazônia ao nos debruçarmos sobre os dados de violência baseada em gênero contra mulheres da região.
Quando olhamos para os registros dos boletins de ocorrência produzidos pelas Polícias Civis, praticamente todos os crimes baseados no gênero são maiores nos estados da Amazônia Legal do que no restante do Brasil. A taxa de feminicídios nos municípios da Amazônia foi de 1,8 para cada 100 mil mulheres, 30,8% superior à média nacional, que foi de 1,4 por 100 mil. Chama a atenção que as áreas classificadas como intermediárias (adjacentes e remotas) e as rurais (adjacentes e remotas) apresentaram taxas de feminicídio ainda mais elevadas que a das áreas urbanas, indicando um padrão disseminado de violência de gênero na região.
Quando consideramos todos os assassinatos de mulheres, ou seja, não apenas aqueles classificados como feminicídios, mas também os homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, a situação é ainda mais grave. A taxa de mortes violentas intencionais de mulheres na Amazônia foi de 5,2 por 100 mil mulheres, 34% superior à média nacional, de 3,9 por 100 mil. Assim como nos feminicídios, nas áreas urbanas, rurais e intermediárias as taxas se mostraram mais elevadas nas cidades da Amazônia legal.
Entre os nove estados que compõem a região, Rondônia apresentou a maior taxa de feminicídio no último ano, de 3,0 mortes por 100 mil, seguido do Acre com taxa de 2,7 e Mato Grosso com taxa de 2,6. Apenas Roraima (0,9), Amazonas (1,1) e Pará (1,2) registraram taxas de feminicídio inferiores à média nacional, mas esta informação pode estar enviesada pela baixa notificação de feminicídios nesses estados, ou seja, do total de mortes violentas de mulheres, um percentual baixo foi classificado como tendo sido motivado por questões de gênero ou violência doméstica. Em Roraima, por exemplo, apenas 9,1% de todos os assassinatos de mulheres foram classificados como feminicídio, no Amazonas 23,9% e, no Pará, 24,5%, enquanto a média nacional foi de 35,6%.
Se considerarmos todos os homicídios de mulheres, as taxas em vários estados se mostraram muito mais elevadas. Roraima, que apresentou a menor taxa de feminicídio ano passado, registra a segunda maior taxa de homicídios de mulheres no período, com 10,4 por 100 mil mulheres, 170% superior à média nacional. Ou seja, é muito provável que partes destes assassinatos de mulheres fossem feminicídios que não foram corretamente classificados. No caso do Maranhão, foram considerados apenas os registros de assassinatos de mulheres que ocorreram nos 181 municípios que fazem parte da Amazônia legal. Em 8 dos 9 estados a taxa de assassinatos de mulheres se mostrou superior à média nacional, com a maior taxa registrada em Rondônia, de 11,1 mortes por 100 mil mulheres.
É difícil tecer explicações que justifiquem índices tão elevados de violência letal contra a mulher na região Amazônica, especialmente na comparação com o resto do país. Por que as mulheres amazônicas morrem mais do que as demais brasileiras, seja por feminicídios, seja por outras dinâmicas de violência? Buscando compreender tal contexto, uma das hipóteses aventadas pela literatura tem relação com o processo colonizador muito particular pelo qual passou a região, majoritariamente masculino, marcado pelo silenciamento e exploração da mulher e sob uma perspectiva utilitarista, baseada em um olhar para a Amazônia como espaço provedor de matérias-primas, sem preocupação com o desenvolvimento local.
Em uma perspectiva histórica, Chaves e César descrevem o processo de ocupação da Amazônia e argumentam que o ato de colonizar era uma função eminentemente masculina, de modo que as mulheres caboclas e indígenas sequer eram consideradas cidadãs.[2] É somente a partir da Cabanagem no séc. XIX que as mulheres surgem na historiografia, ainda que timidamente. Com o início do ciclo da borracha, a população da região cresceu substancialmente, passando de 323 mil pessoas em 1870 para 1.217.00 em 1910, população essa quase que exclusivamente masculina. A própria figura do seringueiro é retratada por Wolff como protagonista de uma sociedade patriarcal baseada em relações violentas e para o qual a mulher não passava de mercadoria, podendo ser vendida, estuprada ou explorada sexualmente.[3]
No mesmo sentido, Darcy Ribeiro argumenta que, diferentemente de outras frentes de expansão econômica, como a agrícola e a pastoril, nas quais predomina a migração de células familiares, nas frentes extrativistas, como no caso da borracha e da garimpagem, há uma presença predominantemente masculina – fato que estimula o estabelecimento de mercados do sexo e que envolvem práticas extremamente degradantes como o tráfico de mulheres, contextos descritos no capítulo 4 de Cartografias da Violência na Amazônia.[4]
Nesse sentido, o processo migratório e o modelo econômico de exploração do território parecem ter contribuído para aumentar a objetificação da mulher, ampliando a sua vulnerabilidade. Além disso, estamos falando de uma população feminina majoritariamente negra, indígena e ribeirinha, cujos marcadores sociais se sobrepõem em camadas de vulnerabilidade e risco.
Soma-se a este contexto os desafios relativos a regiões fronteiriças e a expansão do narcotráfico na região da Amazônia, que impuseram novas dinâmicas às relações de gênero. Se historicamente o crime organizado também foi retratado como um campo dominado por homens, a partir dos anos 2000 temos o crescimento exponencial da população carcerária feminina, direcionando novos olhares e análises para este universo. Seja como agentes do mundo do crime, inclusive com protagonismo nos negócios criminais, ou por seus vínculos afetivos com homens faccionados, o fato é que o quadro que se desenha no séc. XXI permanece pautado pelas desigualdades de gênero e pela lógica patriarcal. Se no séc. XIX as mulheres eram vistas como propriedades dos seringueiros, hoje são vistas como propriedades de homens faccionados, sujeitas a punições duras caso não cumpram com as expectativas de gênero, tal como a raspagem da cabeça ou das sobrancelhas – atingindo centralmente elementos da feminilidade – ou até mesmo a morte.[5]
*O texto original foi publicado no Cartografias da Violência na Amazônia e pode ser lido na íntegra neste link: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2023/11/cartografias-violencia-amazonia-ed2.pdf