Múltiplas Vozes 03/05/2023

Está nas mãos do STF a responsabilidade de exigir critérios objetivos para fundada suspeita

STF começou a julgar em março a validade de provas obtidas em abordagens policiais racistas. O resultado pode definir o futuro do policiamento ostensivo baseado no 'tirocínio' dos agentes, guiado por preconceitos raciais

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Marina Dias

Diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Clarissa Borges

Assessora de Advocacy e Litígio Estratégico do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

No início do mês de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento do Habeas Corpus HC 208.240/SP[1] que contesta a validade de provas criminais obtidas mediante abordagens policiais discriminatórias. O caso concreto discutido na ação envolve um homem negro, condenado a quase oito anos em regime fechado pelo crime de tráfico de drogas, após ter sido abordado na rua por dois policiais militares, que encontraram com ele 1,53 grama de cocaína. O episódio ocorreu na cidade de Bauru, interior de São Paulo, e um dos agentes alegou como motivo para a realização da busca pessoal o fato de o rapaz ser “um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que estava em pé junto ao meio-fio da via pública e um veículo estava parado junto a ele, como se estivesse comprando/vendendo algo”.

O caso configura claro exemplo de perfilamento racial. Na definição das Nações Unidas, o termo se refere ao “processo pelo qual as forças policiais fazem uso de generalizações fundadas na raça, cor, ascendência, nacionalidade ou etnicidade ao invés de evidências objetivas” para submeter cidadãos a batidas ou para proferir julgamento sobre envolvimento em uma atividade criminosa (ACNHUD, 2020, p. V).

A lei brasileira prevê que a busca pessoal prescinde de mandado judicial desde que o policial possua “fundada suspeita” de que a pessoa a ser revistada esteja na posse de objetos ilícitos ou proibidos, como armas e drogas (art. 240 do Código de Processo Penal). A sua função é a obtenção de provas a serem utilizadas em eventual processo criminal. Porém, inexiste no texto da lei delimitação de critérios para a caracterização da “fundada suspeita”. Essa zona cinzenta, no caso das abordagens, não se restringe apenas ao âmbito processual. Muito pouco se sabe sobre os atos normativos internos dos policiais acerca das buscas pessoais. Assim, a falta de transparência por parte das corporações abre brechas para práticas discricionárias baseadas no “tirocínio” ou “faro” dos agentes, frequentemente guiados por preconceitos raciais (SANTOS & FASORANTI, 2023).

Para corrigir esse vácuo legal, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Conectas Direitos Humanos, Instituto Igarapé e Instituto Sou da Paz, elaboraram a sugestão legislativa que acrescenta à lei o auto de busca pessoal nas abordagens policiais. A proposta, apresentada como o PL 3060/2022[2], determina que no documento devem constar: a localidade onde o fato ocorreu, a identificação da pessoa submetida ao procedimento (raça, identidade de gênero, idade e nacionalidade), detalhes sobre as motivações que levaram à suspeita e a descrição de como foi o procedimento. Também se define a fundada suspeita como “atos ou ações objetivamente verificáveis, anteriores à realização da busca, que permitam inferir com segurança” a prática de conduta ilícita pela pessoa abordada.

No julgamento do HC 208.240, o STF tem contado com a participação de mais de 10 organizações da sociedade civil, que atuam como amigos da corte no caso, chamando a atenção do tribunal para o uso massivo de estereótipos raciais na seleção de suspeitos. O IDDD levou ao Supremo, junto com a Coalizão Negra por Direitos, o precedente do caso Fernández Prieto & Tumbeiro vs. Argentina, julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2020[3]. O processo tratou de duas prisões ilegais ocorridas em 1992 e 1998, em Buenos Aires, após abordagens policiais feitas sem razões objetivas e verificáveis. Em uma das abordagens, os agentes alegaram que o “estado de nervosismo” da pessoa levantou suspeita, além da incompatibilidade de seus trajes com o local por onde circulava. Foram encontrados itens ilícitos nas duas buscas pessoais, porém a corte considerou os procedimentos ilegais e condenou o Estado argentino a pagar indenizações aos dois cidadãos.

Além disso, o tribunal determinou uma série de providências ao Estado argentino, como a obrigatoriedade de implementar, no prazo de dois anos, um plano de capacitação das forças policiais da Província de Buenos Aires, da Polícia Federal Argentina, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Outras exigências foram a coleta, a publicação e a divulgação de estatísticas oficiais acerca da atuação das forças de segurança do país para dimensionar a magnitude do fenômeno das abordagens e detenções, com a finalidade de traçar estratégias de prevenção e erradicação de novos atos de arbitrariedade e discriminação. A decisão vale para todos os Estados sob jurisdição da corte, inclusive o Brasil.

Em nosso país, também há falta de transparência e carência de produção de dados oficiais sobre as abordagens policiais. No estado de São Paulo, os únicos dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública tratam do número absoluto de abordagens e de prisões em flagrante. Não existem, por exemplo, informações de quantas pessoas foram abordadas em cada procedimento, os locais que aconteceram as buscas pessoais, o perfil dos sujeitos abordados e tampouco a justificativa desses atos e quais deles resultaram em prisão.

No ano de 2022 foram realizados 9,2 milhões de buscas pessoais em São Paulo. Ao estabelecermos uma relação direta com as prisões em flagrante efetuadas no mesmo período (com a ressalva de que nem todas elas foram decorrentes de abordagens), é possível verificar que em apenas 1,1% (104 mil) dos procedimentos a fundada suspeita dos policiais foi confirmada e levou a detenções. Tais números indicam a ineficiência dos “enquadros”, como são feitos hoje, para a efetiva identificação de suspeitos.

Para melhor compreensão do problema, o IDDD, em parceria com o data_labe (laboratório de dados e narrativas da favela da Maré, no Rio de Janeiro), realizou a pesquisa “Por que eu?”, que ouviu 1.018 pessoas no Rio de Janeiro (510) e em São Paulo (508). Segundo os resultados, uma pessoa negra tem quatro vezes mais risco de sofrer uma abordagem policial em comparação com uma branca.

As informações apresentadas acima – e o próprio caso discutido no HC 208.240 – apontam que as abordagens operam hoje como ferramenta estatal de filtragem racial na seleção de suspeitos pelas polícias. Por constituir instrumento bastante usual no policiamento ostensivo, torna-se uma das principais portas de entrada do sistema de justiça criminal e é refletida na quantidade de pessoas negras atrás das grades (67,5% da população prisional, segundo dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública).

O STF já reconheceu o racismo estrutural – no qual se insere o racismo institucional das polícias – em outros momentos, como quando confirmou a constitucionalidade das cotas raciais (ADPF 186). O julgamento do HC 208.240 é mais um momento histórico para a justiça brasileira. O Poder Judiciário tem papel fundamental no controle da atividade policial e pode ajudar a frear as ilegalidades e injustiças perpetradas pela política de “enquadros” em massa contra um único grupo racial.

 

Referências

Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Prevenindo e combatendo o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes: boas práticas e desafios. 2020. Disponível em https://acnudh.org/load/2020/12/1821669-S-DPI-RacialProfiling_PT.pdf.

 

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ano 16, 2022. ISSN 1983-7364. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/06/anuario-2022.pdf?v=15.

 

INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Por que eu? Como o racismo faz com que as pessoas negras sejam o perfil alvo das abordagens policiais. 2022. Disponível em https://iddd.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2022/07/relatorio-por-que-eu-2-compactado.pdf.

 

SANTOS, P. P. C.; FASORANTI, C. O. O. Perfilamento racial em buscas pessoais: desafio ao sistema jurídico de matiz discriminatória. Boletim Revista dos Tribunais Online, vol. 37, 2023. Disponível em https://revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document.

 

 

[1] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6287873

[2] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2227813

[3] https://iddd.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2020/10/decisao-corte-idh.pdf

 

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