Múltiplas Vozes 30/07/2025

Entre o espetáculo político e a invisibilidade social: hierarquias e paradoxos da monitoração eletrônica no Brasil

Enquanto jovens negros e pobres são sistematicamente criminalizados e invisibilizados, figuras políticas brancas de elite mobilizam redes de solidariedade quando submetidas a medidas penais como a aplicação de tornozeleiras eletrônicas

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Izabella Lacerda Pimenta

Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF); pesquisadora visitante do Departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa (Canada) e do Correctional Service of Canada (2012-2013); pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) – Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC), UFF/Niterói/RJ e do Laboratório de Gestão de Políticas Penais - LabGEPEN/UnB/Brasília

Imagine duas cenas contemporâneas no Brasil. Na primeira, milhares de pessoas acordam todas as manhãs com o peso da tornozeleira eletrônica, enfrentam feridas provocadas pelo equipamento, carregadores que os mantêm imobilizadas por horas, estigma social que os acompanha nas ruas, juntamente com as práticas de suspeição sistemática que insistem em prisões injustificadas de pretos, pobres e periféricos – tudo isso em silêncio midiático. Aliás, os alardes da mídia nesse sentido são de enaltecer buscas e apreensões, mesmo sem mandado judicial porque, notadamente, amplos setores sociais se dizem insatisfeitos com a resposta punitiva dada pela tornozeleira. Ou seja, o anseio social majoritário ainda é a prisão como uma forma de resposta para a manutenção da propalada “ordem pública”.

Mas vamos à segunda cena: uma única tornozeleira eletrônica aplicada a um ex-presidente mobiliza debates internacionais sobre soberania, gera manifestações diplomáticas e alimenta teorias conspiratórias. A sobrecarga midiática acerca do fato nos leva a pensar: que sociedade é esta que distribui sua compaixão de forma tão seletiva? Como antropóloga que estudou sistemas de justiça criminal tanto no Brasil quanto no exterior, essa contradição me intriga profundamente – ela cristaliza não apenas as arbitrariedades de nosso sistema penal, mas também a persistência de hierarquias sociais que desafiam os princípios democráticos de igualdade ainda difusos no Brasil.

A expansão da monitoração eletrônica no Brasil tem se dado em ritmo vertiginoso e em desacordo com os princípios que justificariam sua adoção como possibilidade penal menos gravosa. Os dados oficiais refletem uma realidade preocupante: o número de pessoas monitoradas eletronicamente saltou de 18.172 em 2015 para 122.102 no segundo semestre de 2024, representando um aumento de 571,68% em menos de dez anos (BRASIL, 2015; BRASIL, 2024). Se essa tendência for mantida, estima-se que em 2034 o Brasil poderá ter aproximadamente 819.630 pessoas em monitoração eletrônica – número que se aproxima do total de pessoas privadas de liberdade atualmente sob custódia direta do Estado, revelando o risco de consolidação de uma nova forma de encarceramento em massa, quase invisível e tecnologicamente mediado.

Esse crescimento não está associado ao enfrentamento do superencarceramento. Em 2024, o Brasil contabilizou 888.791 pessoas presas, com taxa de encarceramento de 418 por 100 mil habitantes, mantendo o país entre os maiores encarceradores do mundo. A monitoração eletrônica, longe de substituir o cárcere, tem apenas se somado a ele.

Essa expansão silenciosa contrasta dramaticamente com o espetáculo midiático gerado pela aplicação da medida a uma única figura política. Desde junho de 2015, a partir de dados empíricos, tenho observado em diversas unidades federativas realidades que raramente chegam ao conhecimento público. As tecnologias disponíveis são “robustas”, pesadas, causando ferimentos nos monitorados, que “costumam usar mais de uma meia ou faixas de pano para se protegerem”. Esse constrangimento físico diário é aceito como normal para a população comum monitorada. O mais revelador é o silêncio absoluto que envolve essas mais de 122 mil pessoas – nenhuma conta com o mesmo canal de visibilidade que um ex-presidente conseguiu mobilizar.

Do ponto de vista jurídico, a aplicação da tornozeleira eletrônica a ex-presidentes está plenamente amparada pela legislação brasileira. O art. 319, IX do CPP e o art. 146-B da LEP estabelecem que não há exceções legais baseadas em cargos exercidos. Ser ex-presidente não concede imunidade penal após o mandato. Mas aqui reside um paradoxo: por que uma medida legalmente aplicável a todos provoca tanto estranhamento quando atinge figuras de poder?

A tornozeleira tem a capacidade de se tornar um objeto a favor do espetáculo quando aplicada a figuras de poder. Como observa Debord (1997), a sociedade do espetáculo converte eventos em narrativas políticas mobilizadoras, hoje especialmente impulsionadas pelas redes sociais. Não é à toa que, entre as condicionalidades aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal, está a proibição de utilização de redes sociais. O dispositivo transcende sua função técnica para se tornar símbolo de suposta perseguição política.

Essa transformação revela o que Roberto DaMatta (1997) identificou como a lógica do “você sabe com quem está falando?” – uma forma tipicamente brasileira de reivindicar privilégios com base na posição social. Enquanto a aplicação da medida a pessoas comuns é naturalizada, sua aplicação a figuras políticas é ressignificada como “humilhação indevida”. A humilhação pessoal se converte em capital simbólico e midiático, contrastando com a invisibilidade das centenas de milhares de pessoas que vivenciam a mesma experiência.

A aplicação seletiva da compaixão pública revela como a seletividade do sistema penal opera não apenas na aplicação das leis, mas na distribuição da solidariedade social. Esta seletividade tem raízes históricas e raciais profundas: 67% das pessoas privadas de liberdade são negras, 56% são jovens entre 18 e 29 anos, com baixa escolaridade – 80% estudaram no máximo até o ensino fundamental. Como pontua Kant de Lima (2013), nossa justiça criminal “assegura privilégios e desigualdades consagradas na própria legislação penal, gerando esquemas de seletividade penal para alimentar continuamente o sistema prisional”.

Essa seletividade se manifesta perversamente: enquanto jovens negros e pobres são sistematicamente criminalizados e invisibilizados, figuras políticas brancas de elite mobilizam redes de solidariedade quando submetidas às mesmas medidas penais sob o teto de suas luxuosas residências.

Se olharmos o cenário internacional, há sistemas de justiça nos quais ex-presidentes enfrentam processos judiciais sem que isso seja interpretado como afronta à dignidade. Nos Estados Unidos, como demonstra Kant de Lima (2013), o sistema opera baseado na premissa de igualdade perante a lei, com “arbitragens pelo júri representadas como arenas públicas nas quais as categorias legais são reproduzidas de maneira universal”. Ex-presidentes como Trump enfrentaram processos judiciais sem que isso fosse interpretado como excepcional.

No Brasil, persiste uma tradição hierárquica que admite tratamentos diferenciados. Quando Donald Trump declara publicamente que “é preciso tirar a tornozeleira do Bolsonaro”, presenciamos intervencionismo disfarçado que fere princípios básicos da soberania nacional – a ideia de que figuras estrangeiras têm legitimidade para pressionar decisões do sistema de justiça soberano. A monitoração eletrônica no Brasil cristaliza as contradições de nossa democracia recente. Defendemos nossa soberania contra interferências externas, mas precisamos construir instituições internas capazes de aplicar a lei universalmente.

A superação dessas contradições demanda transformação cultural que reconheça na igualdade perante a lei o fundamento da democracia que queremos construir. Enquanto distribuirmos nossa compaixão seletivamente – mobilizada para questionar medidas quando aplicadas a figuras políticas, mas ausente quando se trata de pessoas comuns –, permaneceremos reféns de hierarquias que negam nossa igualdade democrática porque aqui ninguém é [ou quer ser] igual perante a lei[1]. O “você sabe com quem está falando?” permanece como código oposto à aplicação universal da justiça.

O desafio, no final das contas, não é apenas jurídico ou político, mas fundamentalmente antropológico: como transformar uma sociedade que ainda sonha com privilégios numa sociedade que finalmente aceite a igualdade como valor fundante?

 

Referências
[1] A música de Claudio Salles, inspirada nos textos de Roberto DaMatta, expressa nossas contradições sociais: “Você sabe com quem está falando? Eu trabalho dentro de uma pirâmide. Eu tenho crachá. Eu sou do controle. Eu tenho amizades que me ligam ao alto da torre. (…) Aqui ninguém é igual perante a lei.”
BRASIL. A implementação da política de monitoração eletrônica de pessoas no Brasil. Brasília: PNUD, 2015.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Brasília, 1984.
BRASIL. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Altera dispositivos do Código de Processo Penal. Brasília, 2011.
BRASIL. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Painel Interativo do Sistema Penitenciário Brasileiro. Brasília: Ministério da Justiça, 2024.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
KANT DE LIMA, Roberto. Entre as leis e as normas: Éticas corporativas e práticas profissionais na segurança pública e na Justiça Criminal. Revista Dilemas, v. 6, n. 4, 2013.
PIMENTA, Izabella Lacerda. Nem Benefício, Nem Regalia: práticas e arbitrariedades nos serviços de monitoração eletrônica de pessoas no Brasil. In: DE VITTO, Renato; DAUFEMBACK, Valdirene (Orgs.). Para além da prisão. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
SALLES, Claudio. Você sabe com quem está falando? [Música]. Niterói: Movimento Pop Goiaba, 2010.

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