Múltiplas Vozes 21/11/2025

Entre o discurso e o medo: a verdade sobre a segurança em SP

Em vez de celebrar números isolados, o governo deveria apostar em resultados estruturais. A segurança pública não se mede por likes em postagens oficiais, mas pela confiança do cidadão ao sair de casa

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André Santos Pereira

Delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Especialista em Inteligência Policial e Segurança Pública (ESDP/FCA). Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP)

A segurança pública em São Paulo vive um paradoxo: enquanto o governo comemora quedas expressivas nos índices criminais, a população sente exatamente o contrário. Essa dissonância entre o discurso oficial e a realidade cotidiana é o sintoma mais visível de uma política que, em vez de enfrentar o problema, o disfarça sob uma retórica de sucesso estatístico.

A Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado tem investido em uma comunicação otimista, amplamente difundida nas redes sociais, mas sustentada por um artifício retórico perigoso: a “falácia da generalização precipitada”. Selecionam-se indicadores específicos — como a redução dos roubos em um único mês e apenas na capital — e, a partir deles, infere-se uma melhora generalizada da segurança em todo o estado. É como olhar para uma uva boa e declarar que toda a safra foi excelente.

Essa estratégia de “torturar os dados até que confessem qualquer coisa”, como ironizou o economista Ronald Coase[1], cria uma narrativa conveniente, porém distante da realidade. O Datafolha é contundente: 64% dos paulistas acreditam que a segurança piorou no último ano, contra apenas 8% que veem melhora. Ou seja, o marketing institucional não convence quem vive o cotidiano das ruas.

E há razões concretas para isso. Na Vila Leopoldina, bairro nobre da capital, moradores se mobilizaram em grupos de WhatsApp com mais de mil pessoas para cobrar providências diante do aumento dos furtos. A situação no bairro chegou a virar notícia publicada pela Folha de S.Paulo[2]. Em agosto — o mesmo mês em que a SSP celebrou “recordes” de redução da criminalidade — a região registrou 231 furtos, o maior número desde o início da série histórica em 2001. O contraste é gritante.

Em Diadema, o quadro é semelhante: entre janeiro e agosto, os furtos de veículos subiram 18,6% em relação ao mesmo período do ano anterior. São números oficiais, da própria SSP, que revelam que o problema não desapareceu — apenas mudou de forma e endereço.

Essa “migração do crime” pode ser explicada pela teoria econômica do crime, formulada por Gary Becker, Prêmio Nobel de Economia. Segundo ele, o criminoso é um agente racional que calcula custos e benefícios. Quando o risco de prisão ou confronto aumenta em determinada modalidade criminosa — como o roubo, que envolve violência e penas mais duras — há uma tendência natural de deslocamento para crimes de menor risco, como o furto ou o estelionato digital.

Os dados nacionais confirmam essa dinâmica: entre 2018 e 2024, os roubos caíram 51%, mas os estelionatos cresceram 408%, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O crime não acabou — ele apenas se adaptou.

A resposta do Estado, porém, segue presa ao passado. A política de “saturação policial”, que concentra efetivos em áreas específicas, é uma estratégia de curto prazo, incapaz de produzir resultados duradouros. Quando a polícia se retira, o crime volta. Quando o estado altera o foco de maneira pontual, o criminoso muda sua forma de atuar e continua agindo sem ser pego. Repetir a mesma fórmula esperando resultados diferentes é, no mínimo, insistência ingênua — ou cálculo político.

A solução real passa longe das blitzen televisivas e das postagens em redes sociais. O que falta é investimento em investigação. A Polícia Civil, com sua competência constitucional para apurar infrações penais, deveria ser o eixo central de uma política pública baseada em inteligência, não em espetáculo. Inquéritos bem conduzidos desarticulam quadrilhas, sustentam condenações sólidas e afastam reincidentes de circulação.

Em vez de celebrar números isolados, o governo deveria apostar em resultados estruturais. A segurança pública não se mede por likes em postagens oficiais, mas pela confiança do cidadão ao sair de casa.

Enquanto os dados forem “torturados” para confessar o que o poder quer ouvir, a violência continuará solta — e a verdade, silenciada.

 

[1] COASE, Ronald. If you torture the data long enough, it will confess to anything. [S.l.: s.n.], [s.d.]. Frase atribuída ao autor.
[2] FOLHA DE S. PAULO. “Vila Leopoldina registra alta de roubos e furtos em 2025.” São Paulo, 21 out. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/10/vila-leopoldina-registra-alta-de-roubos-e-furtos-em-2025.shtml. Acesso em: 6 nov. 2025.

 

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