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Educar os policiais para a paz, tarefa inacabada

Entre resultados ambivalentes, resta viva no seio das organizações policiais a necessidade premente do estímulo ao exercício reflexivo sobre os valores e as crenças que orientam o exercício da atividade de policiamento do espaço público

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Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto

Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Wilquerson Felizardo Sandes

Coronel da reserva (PMMT), doutor em Educação (Unicamp)

No ano de 2001, enquanto as universidades brasileiras em geral ainda não se dispunham a estudar as questões da polícia e da segurança pública no país – como há tempos já faziam acadêmicos estrangeiros, em suas sociedades –, foi realizado pela Universidade Federal Fluminense o primeiro curso de especialização lato sensu em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública, ofertado a oficiais superiores da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e a alguns poucos alunos civis interessados.

O desafio consistiu em articular desejos e projetos comuns da PMERJ e de pesquisadores acadêmicos, para desvelar um conhecimento ainda indisponível ao público. Se, por um lado, a polícia não pensava em profundidade teórica sobre suas ações, por outro, “polícia” não era até então um assunto nobre no meio acadêmico.

O curso foi realizado no Campus Gragoatá, onde a simples presença dos alunos policiais no território enfrentou a desconfiança, o descrédito e até o repúdio de discentes e docentes. A universidade não era lugar para policiais militares.

Inobstante, a iniciativa foi bem-sucedida graças à insistência em aproximar polícia e universidade capitaneada, na PMERJ, pelo Coronel Jorge da Silva, que teve êxito em angariar recursos junto à Fundação Ford para a realização do projeto, e, na UFF, pelo professor Roberto Kant de Lima, que coordenou a especialização, reunindo pesquisadoras e pesquisadores do tema para compor o corpo docente.

A resistência ao entrosamento entre polícia e universidade não se limitou ao mundo acadêmico. Também se manifestou com força no meio policial militar. O diploma da UFF – que na PMERJ recebeu a equivalência ao Curso Superior de Polícia (CSP), requisito à promoção ao último posto hierárquico (coronel) –, e de doutorado da Unicamp, por exemplo, seriam recusados por corporações sob o pretexto de não corresponder à educação policial militar. Avaliaram que não correspondiam aos cursos de carreira.

Desde então, muitas mudanças ocorreram nas organizações policiais e nas universidades em relação à educação de policiais.

A iniciativa da UFF se somaria às experiências de educação de policiais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lideradas pelo professor José Vicente Tavares, e juntas serviram de base para a construção, em 2006, da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp); política de governo coordenada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, que fomentou o desenvolvimento acadêmico dos profissionais e dos instrumentos de gestão em segurança pública, bem como a produção de conhecimento científico sobre o importante tema.

A Renaesp propiciou aos profissionais de segurança pública acesso a cursos de especialização lato sensu, multidisciplinares, reflexivos, realizados através de parcerias com Instituições de Ensino Superior (IES). Em pouco mais de uma década, alcançou todas as unidades da federação, especializando mais de 7 mil alunos (em maioria policiais militares) nos quase 160 cursos realizados.

Da Renaesp se originaram cursos de mestrado profissional em segurança pública, como os até hoje ofertados pelas universidades federais do Pará (UFPA) e da Bahia (UFBA). Grupos e linhas de pesquisa foram criados e se fortaleceram em programas de pós-graduação consolidados, de mestrado e de doutorado, mormente no campo das Ciências Sociais. Contamos agora com vasta produção acadêmica sobre o tema, no Brasil.

Por sua vez, as organizações policiais buscaram reformular suas próprias academias e cursos de formação, com novos quadros docentes mistos (professores civis e policiais militares) e matrizes curriculares alinhadas às orientações da Senasp.

Academias de polícia se credenciaram como IES junto ao Ministério da Educação, a exemplo do Instituto de Ensino de Segurança Pública do Pará, do Instituto Superior de Ciências Policiais da Polícia Militar do Distrito Federal e da Academia de Oficiais e do Cento de Formação de Praças, da Polícia Militar do Mato Grosso. Com a nova condição, cada “IESPM” pode promover seus cursos de especialização lato sensu.

Outras organizações traçaram caminhos peculiares. Enquanto a Polícia Militar do Maranhão firmou convênio com a Universidade do Estado para a realização conjunta da formação dos oficiais como “bacharéis em Segurança Pública”, com aulas civis no campus universitário e instruções policiais militares na academia, em direção diversa, a Polícia Militar do Estado de São Paulo criou seu Centro de Altos Estudos de Segurança adotando que o ensino militar é diferenciado, nos termos do artigo 83, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei federal 9.394/96), e passou a oferecer cursos endógenos de pós-graduação lato e strictu senso.

A situação presente da educação dos policiais no Brasil é, no mínimo, inusitada. Academias militares estaduais conquistaram duplo status educacional e são agora IES, no sistema civil, e Instituições de Ensino Militar (IEM), no sistema próprio. Com isso, realizam seus cursos de progressão profissional como especialização militar e pós-graduação lato sensu, como é o caso do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais (CAO) e do CSP.

Excelente avanço educacional de desenvolvimento de pessoal, mas que se atrapalha com o duplo status que possui. Afinal, pessoas egressas das especializações policiais militares de carreira antes do acesso ao status de IES poderiam receber a equivalência interna em relação aos novos cursos de carreira (de pós-graduação, análogos ao CAO e CSP)?

A despeito do atendimento à Resolução CNE/CES nº 1, de 6 de abril de 2018, que estabelece critérios para equivalência de curso como especialização lato sensu, nos dias de hoje, em certas corporações, não apenas os cursos de pós-graduação realizados em universidades permanecem sendo invalidados para a educação policial militar, como também cursos de carreira realizados antes da criação das IESPM têm a equivalência aos novos negada. A questão chave e paradoxal é que se, por vezes, a IESPM não reconhece o ensino civil, tampouco reconhece o seu próprio ensino como equivalente.

Enfim, o fato é que nenhuma organização policial militar brasileira se manteve intacta na aproximação com o mundo acadêmico.

E apesar dos notáveis frutos da aproximação das polícias às universidades ao longo de três décadas, a essência da segurança pública não sofreu transformação. Roberto Kant de Lima nota que o modelo de controle social permanece inalterado e fortemente assentado no caráter repressivo do enfrentamento aos conflitos sociais.

Inequivocamente, há muito por fazer. Entre resultados ambivalentes, resta viva no seio das organizações policiais a necessidade premente do estímulo ao exercício reflexivo sobre os valores e as crenças que orientam o exercício da atividade de policiamento do espaço público.

Nada mais adequado que parafrasear José Vicente Tavares, para concluir: educar policiais para a paz é tarefa ainda não concluída, nas academias de polícia e universidades brasileiras.

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