Profissão Polícia

E a reforma das polícias brasileiras?

Como os custos para implementação de mudanças superam os ganhos imediatos, governantes e legisladores preferem a comodidade dos velhos catálogos populistas: guerra contra o crime, com mais viaturas, armamentos e policiamento repressivo nas ruas

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

O modelo policial brasileiro, previsto no art. 144 da Constituição de 1988, apesar de gerar tensões entre as forças e de ser disfuncional quanto aos resultados na prestação do serviço de segurança pública, tem se mantido quase inalterado. Trata-se de um modelo que reproduziu as estruturas do período autoritário, com polícias influenciadas pelo aparelhamento e cultura militarista, além de forças devotas ao policiamento lei e ordem, com a prevalência da ideia de guerra contra o crime. Essa conjuntura tem favorecido ao insulamento das corporações em seus próprios interesses; ademais, formas de policiamento ora ineficientes, discriminatórios e violentos.

O art. 144, da Constituição de 1988, estabelece corporações em nível estadual, que é composto por Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, e Polícias Civis; no nível federal, por corporações de natureza civil, sendo Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Polícia Ferroviária Federal (PFF). Em 2019, com a emenda constitucional nº 104, foram criadas as polícias penais, nas esferas federal, estadual e distrital. Elas aproveitaram quadros de agentes penitenciários. No caso da União, a Polícia Penal Federal (PPF) ainda carece de regulamentação, logo permanece o Departamento Penitenciário Nacional. Nesse modelo federativo, coube aos municípios a previsão de guardas, mas, em sentido estrito, sem atribuição policial.

Destarte, o modelo policial pode ser visto como dual, com corporações investigativas e ostensivas; fragmentado, dividido em competências específicas para cada órgão e definidas por cargos; múltiplo, com corporações nos níveis federal e estadual. No caso dos estados, cada um possui polícias militares e polícias civis, totalizando 54 organizações. Na União, há três polícias (PF, PRF e PFF); sendo que a PFF não se concretizou na prática e, a PPF ainda não foi regulamentada. Além disso, a União se vale da Força Nacional de Segurança Pública, que é composta de profissionais das unidades federativas (policiais militares, bombeiros militares, policiais civis e peritos). Embora não seja formalmente inscrita no texto constitucional, atua como unidade de policiamento em situações pontuais.

Diante disso, não podemos afirmar que há um sistema policial no Brasil, mas uma estrutura com diversas corporações em níveis diferentes e com competências estanques, a qual carece de mecanismos de coordenação, cooperação e integração. Por conta disso, muito se tem discutido reformas mais profundas no modelo policial brasileiro, com temas como desmilitarização, unificação das polícias civis e militares, carreira única nas corporações, ciclo completo de policiamento. Não há entendimento sobre o que reformar, mas o avanço de pautas de segmentos da sociedade civil e das polícias, conforme deficiências e necessidades vão se evidenciado.

Parte das apreciações em relação ao modelo policial provém da academia e de grupos organizados da sociedade civil. Nesse segmento, cita-se, por exemplo: Núcleo de Estudo da Violência, da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos, da Universidade Federal Fluminense (INCT-InEAC), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Instituto Sou da Paz. Particularmente essas organizações têm produzido relevantes conhecimentos sobre as vicissitudes da relação polícia e sociedade, por exemplo, a temática da violência policial. Em linhas gerais, esse segmento aponta para a necessidade de alinhamento das polícias ao Estado de democrático de direito; bem como para a construção de um sistema policial desmilitarizado, cidadão e fundamentado nos direitos humanos.

Outro segmento que traz críticas ao modelo policial provém das próprias corporações. Tratam-se de demandas oriundas de associações e sindicatos que representam policiais insatisfeitos com a distribuição dos poderes e recursos nas forças. Nesse caso, insere-se o tema de carreira única, o qual critica a forma de dupla entrada entre carreiras de comando e de execução das polícias civis e militares. Da mesma forma, o ciclo completo, que critica a fragmentação de competências por cargos e entre corporações ostensivas e investigativas. Em geral, as análises desse segmento têm dificuldade de progredir porque esbarram em interesses corporativos e fomentam conflitos entre policiais numa mesma corporação ou entre forças diversas.

Desse modo, a despeito das mazelas da segurança pública e de tensões nos âmbitos das corporações, não há consenso sobre o que deve ser alterado no modelo policial. Assim, enquanto a sociedade civil almeja um sistema mais eficiente e cidadão, os setores policiais pleiteiam medidas corporativas, que muitas vezes reforçam o atual modelo. Nesse contexto, os custos de implementar reformas tendem a ser maiores do que os ganhos imediatos; logo os atores políticos optam por não assumir os riscos. Com efeito, governantes e legisladores preferem a comodidade dos velhos catálogos populistas: guerra contra o crime, com mais viaturas, armamentos e policiamento repressivo nas ruas.

Em suma, mesmo gerando tensões entre corporações, insatisfações entre policiais, imprecisa efetividade no enfrentamento da criminalidade, uso abusivo da força, desconfiança dos cidadãos, entre outros dilemas, o modelo policial do art. 144, da Constituição de 1988, persiste. Todavia, conservar-se não por que seja o melhor arquétipo, mas porque não há acordo a respeito do que e de como mudar. Diante disso, reforma das polícias é tema no qual tem se gastado muita tinta, mas, infelizmente, com poucas medidas práticas a fim de tornar corporações eficientes e legitimas para a sociedade civil, além de justas para os policiais.

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