Múltiplas Vozes 01/10/2025

Delegacias da Mulher e as campanhas do Agosto Lilás: um exemplo de segurança cidadã

Agosto, estabelecido por lei como o mês destinado à conscientização para o fim da violência contra a mulher, foi um período durante o qual se observaram a mobilização e a integração de vários órgãos empenhados na causa

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Carla Campos Avanzi

Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS/UEL) e do Crime & Society Research Group (CRiS/VUB). Policial Civil no Estado do Paraná. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

As políticas de proteção às mulheres têm adquirido maior amplitude, ainda que insuficientes para coibir os diferentes tipos de violência que vitimizam mulheres todos os dias. O crescimento do número de delegacias especializadas representa avanço no melhor atendimento às vítimas, especialmente em ambientes tradicionalmente masculinizados como são as delegacias de polícia. Para além disso, as delegacias especializadas também podem ser consideradas um reflexo do novo paradigma de segurança.

Para entender a evolução das políticas públicas de segurança no Brasil, é preciso compreender os paradigmas que nortearam essas políticas nos últimos anos. O primeiro, da Segurança Nacional, esteve vigente no período de ditadura militar no Brasil, de 1964 até aproximadamente 1985, período marcado pela supressão de direitos fundamentais, concentração de poder pelas Forças Armadas e pela presidência da República, ocupada por militares. Fundava-se na noção de supremacia do interesse nacional, com uso de força intensa contra o que era identificado como ameaças, internas ou externas. Após a prioridade de enfrentamento ao inimigo externo, ganhou forma a ideia de “inimigo interno”, que deveria ser combatido em razão do interesse nacional (Dutra Freire, 2009).

O segundo, da Segurança Pública, se fortaleceu após a promulgação da Constituição de 1988, período que se caracterizou pela redemocratização no Brasil. A Constituição Federal, marcada pelo amplo debate com diversos setores da sociedade, estabeleceu que a segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, bem como elencou os órgãos responsáveis pelo policiamento público e suas competências. Das ameaças ao interesse nacional presentes no paradigma anterior, passou-se a dar mais atenção às ameaças contra a integridade física e ao patrimônio (Dutra Freire, 2009). Com isso, há uma separação mais evidente dos papéis das polícias e do Exército, após um período em que as Forças Armadas possuíam (quase) plenos poderes (Dutra Freire, 2009).

O terceiro paradigma, da Segurança Cidadã, tem assumido um papel de destaque na América Latina, influenciando os debates sobre o tema, principalmente após os anos 2000. O conceito de Segurança Cidadã parte da premissa de que a criminalidade é multicausal, com foco na prevenção, valorizando-se políticas públicas integradas de âmbito local envolvendo diferentes instituições públicas e a sociedade civil, em várias dimensões, como educação, esporte, lazer, saúde, dentre outras, que aumentem a inclusão social e diminuam os fatores de risco. A participação social e a descentralização são fundamentais no conceito de Segurança Cidadã (Dutra Freire, 2009)

Ainda que sejam marcados por períodos temporais diferentes, no entanto, os paradigmas podem se sobrepor e coincidir, especialmente em momentos de transição. Assim, o paradigma da Segurança Pública pode coexistir simultaneamente com o da Segurança Cidadã. Além disso, embora a redemocratização do Brasil tenha suscitado debates e reformas importantes para a relação entre as polícias e a sociedade, permaneceram continuidades, tanto legais quanto de práticas herdadas dos períodos autoritários, persistindo, nas polícias, uma cultura organizacional baseada na defesa do Estado e não da sociedade. (Lima, Bueno e Mingardi, 2016).

A pluralidade presente nas polícias faz com que, muitas vezes, a atuação ocorra de acordo com diferentes paradigmas. As polícias de Tarcísio, por exemplo, que muitas vezes parecem agir como se estivessem antes da Constituição de 1988, podem não ser a mesma de muitas delegacias e batalhões espalhados pelo país.

Por outro lado, as delegacias especializadas no atendimento às violências de gênero podem ser tidas como bons exemplos do que se tem como Segurança Cidadã. Agosto, estabelecido pela Lei 14448/22 como o mês destinado à conscientização para o fim da violência contra a mulher, foi um período durante o qual se observaram a mobilização e a integração de vários órgãos empenhados na causa, tanto instituições policiais, como de assistência, para a prevenção da violência de gênero em suas complexidades. São visíveis, por exemplo, as integrações das Delegacias da Mulher trabalhando em conjunto com a Patrulha Maria da Penha da Polícia Militar, Centros de Referência de Assistência Social (CREAS e CRAS), núcleos jurídicos e de assistência psicológica e Conselho Tutelar na busca por resultados mais efetivos para diminuição dos números de criminalidade de violência doméstica, que permanecem elevados.

O exemplo tem sido seguido com a ascensão de outras delegacias especializadas, como aquelas voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes, de atendimento a grupos vulneráveis e de proteção aos animais, por exemplo. Essa integração, não apenas nas campanhas, mas no melhor atendimento às vítimas e na persecução penal, reflete uma visão de mundo compartilhada que se coaduna com o paradigma da Segurança Cidadã.

Ainda são muitos os desafios, que vão das políticas de retrocesso à implementação efetiva do que o texto legal dispõe. A obrigatoriedade de funcionamento 24h das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher em todo o Brasil, por exemplo, determinada pela Lei 14.541 de 2023, ainda não é realidade na maioria das delegacias especializadas no país. Além disso, os números do último Atlas da Violência indicam que estamos longe de proteger efetivamente as mulheres no Brasil. Ainda que o percentual de homicídios esteja em queda, o percentual de feminicídios se manteve inalterado entre 2022 e 2023, indicando que os fatores são mais complexos. No entanto, a repercussão da campanha indica um esforço conjunto e plural em prol da resolução deste problema social, como sinal positivo de que é possível mudar paradigmas anteriores e implementar novas e eficientes políticas de segurança no país.

 

Referências
DUTRA FREIRE, Moema. Paradigmas de segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. Revista Brasileira de Segurança Pública, [S. l.], v. 3, n. 2, p. 100–114, 2009. DOI: 10.31060/rbsp.2009.v3.n2.54.
LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito GV, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 49-85, jan./jun. 2016. DOI: 10.1590/2317-6172201603.

 

 

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