Multiplas Vozes 05/04/2023

Delegacia virtual e limitações reais nas polícias civis

O Boletim de Ocorrência online é uma forma efetiva de ampliação da capacidade de registro das polícias civis, mas pode não ser necessariamente uma ferramenta de qualidade de prestação do serviço

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

Recentemente o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) divulgou que a Delegacia Virtual, promovida por esse órgão, alcançou a marca de mais de um milhão de ocorrências registradas online. Tais ocorrências foram oriundas dos estados do Acre, Alagoas, Amazonas, Amapá, Bahia, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Sergipe e Tocantins, os quais aderiram ao serviço do MJSP [1]. Além da plataforma do MJSP, outros estados possuem estruturas próprias a cargo de suas polícias civis ou secretarias de segurança pública. Decerto, modelo de delegacia virtual, especialmente com disponibilização do boletim de ocorrência online, é uma modernização que tem facilitado a comunicação das notícias criminais por parte dos cidadãos, mas que também pode revelar velhos problemas das polícias civis.

De forma geral, o cidadão busca uma delegacia da polícia civil para apresentar uma notícia de crime, que é capturada por meio do boletim de ocorrência (BO). Basicamente, esse documento permite encaminhar investigações e formalizações de fatos ao Poder Judiciário. O boletim de ocorrência online (BO online), realizado pelo próprio cidadão via delegacias virtuais, não é diferente, embora não seja possível comunicar qualquer tipo de crime. Em regra, o BO online aplica-se a crimes de menor potencial ofensivo, patrimoniais sem violência, contra a honra, trânsito. Ressalta-se que, apesar de as delegacias virtuais não serem novidade, ganharam amplitude a partir da pandemia de covid-2019. É fato. Com as limitações impostas por essa pandemia, muitas corporações passaram por ajustes a fim de continuarem a prestação dos registros de notícias criminais

Além disso, observa-se que o uso de tecnologias tem avançado nas polícias civis de formas diversas; por exemplo, com ferramentas de policiamento e investigação (drones, câmeras de videomonitoramento, sistemas de identificação humana, geoprocessamento), gestão (softwares de análise de dados). No geral, tem se apostado em recursos do campo da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC’s) que podem melhorar a capacidade de atendimento das polícias aos cidadãos. Nesse sentido, as delegacias virtuais se constituem numa inovação para maximizar a prestação do serviço de registro policial, bem como numa forma de minimizar as limitações das unidades físicas. Daí, o BO online se insere nessa dinâmica tecnológica, sendo que é uma forma simples e acessível de o cidadão relatar certos eventos ilícitos às autoridades policiais, sem a necessidade de deslocamento para uma unidade física.

O BO online não visa a substituir os registros das delegacias físicas, mas agilizar a prestação do serviço público. Particularmente, no Distrito Federal a Delegacia Eletrônica foi implementada em maio de 2017, embora antes já fossem feitos boletins via internet por outra unidade. Desde sua criação até 2022 foram registradas 851.793 ocorrências, o que corresponde a quase 40% de todos os registros da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF). Em termos de tipos criminais e não flagrantes, a delegacia virtual da PCDF, em 2022, foi responsável pelo registro de 15% dos roubos a transeunte, 55% dos estelionatos, 45% dos furtos.

Ressalta-se que muitas delegacias virtuais também passaram a registrar casos de violência doméstica, no âmbito da Lei Maria da Penha. No Distrito Federal, a Delegacia Eletrônica é a terceira unidade que mais registra casos de violência doméstica não flagranciais; assim, em 2022, registrou 8,0% do total de casos. Por certo, isso tem desafogado os balcões de delegacias da PCDF, bem como tem facilitado a vida dos moradores da Capital Federal.

É fato. Com o desenvolvimento de ferramentas de TIC’s nas polícias e democratização do acesso à internet por parte dos cidadãos; é bem provável que as delegacias virtuais sejam cada vez mais exigidas. Vale destacar que uma delegacia virtual funciona como uma espécie de central de registros para captação de fatos possivelmente criminosos e despachá-los para unidades físicas responsáveis pelas apurações. Nesse contexto, o BO online nas polícias investigativas – essencialmente as polícias civis – passa pelos mesmos processamentos das notícias físicas; quer dizer, embora o boletim seja online, a apuração dele é física.

Destaca-se que o BO online se constitui numa forma efetiva de ampliação da capacidade de registro das polícias civis, mas pode não ser necessariamente uma ferramenta de qualidade da prestação do serviço. Afinal, a resposta que o cidadão ambiciona da polícia não é apenas o registro, porém o que será feito a partir de seus pleitos; ou seja, se fatos relatados são elucidados. Por isso, o registro online pode se tornar uma frustração a mais para os cidadãos, visto que na realidade poucos veem suas demandas serem realmente respondidas por parte das polícias.

Por conseguinte, o modelo das delegacias virtuais, sobremodo com o incremento do BO online, está submetido aos mesmos gargalos dos registros físicos, por exemplo: estrutura seletiva, rígida e cartorial da investigação, além de sucateamento humano e material das polícias civis, o que se reflete numa baixa capacidade dessas organizações em apresentar esclarecimentos dos fatos que lhe são notificados. Destarte, há ainda empecilhos reais nessas corporações investigativas, os quais não podem ser negligenciados pelos números do mundo virtual.

[1] Delegacia Virtual atinge mais de um milhão de ocorrências. GOV.BR. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/delegacia-virtual-atinge-mais-de-um-milhao-de-ocorrencias

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