Multiplas Vozes 08/02/2023

Cloroquinas da Segurança Pública: “Mais Preparo, Inteligência e Tecnologia”

A polícia é a política em armas e, por isso, requer o controle civil do uso potencial e concreto da força coercitiva

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Jacqueline Muniz

Professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense

Herbert Bachett

Doutorando em Sociologia da Universidade de Brasília

“Mais preparo, inteligência e tecnologia” virou uma receita mágica para os todos os males da polícia e da segurança pública no Brasil. Revela-se uma cloroquina retórica que faz mal à oferta de serviços equânimes de segurança à população, à institucionalidade das polícias, ao exercício democrático de governos eleitos e ao lastro científico das pesquisas aplicadas do campo. Ela é veiculada por um pensamento também mágico de expressivo contágio moral, de forte apelo midiático e de significativa serventia a uma lógica conservadora e tutelar de governança da ordem pública. Esta se faz mascarada por uma aparência fashion de modernidade high tech. Nesta fórmula milagrosa – “basta fazer isso” (só que não!) -, a solução normativa-prescritiva vem voando primeiro e a situação e seu diagnóstico reais chegam a pé depois. É claro que pasteurizados por propagandistas desinteressados das ingovernabilidades concretas das espadas e das incertezas, riscos e perigos nos asfaltos e favelas. São eles os ignorantes ilustrados, os mascates de muambas policialescas e os oportunistas eleitorais que, em acordo contábil-moral, ambicionam, feito tiozões de WhatsApp, transformar Fake Science em uma verdade mais verdadeira, por meio de uma corrente consensuada de repetição e saturação discursivas. Essa estratégia de adesão emula um efeito fático, estatístico demonstrativo e de credibilidade, próprio dos argumentos negociados de autoridade que acontecem emancipados de evidências. Se doutos fulanos dizem a mesma coisa, então é! Consistência empírica de menos, rumor pseudo-acadêmico demais!

Das corrupções, chacinas, letalidade e vitimização policiais, atravessando a milicialização e os consórcios criminais, e chegando aos espasmos golpistas, as manifestações predatórias e os atos de terror, ouve-se o mantra monocórdico salvacionista do “preparo, da inteligência e da tecnologia”. Promoção de falsas expectativas nos corações tomados pelo medo politicamente aparelhado. Reforço das razões desiguais de cor, classe, gênero, orientação sexual etc. nas mentes bombardeadas pela fabricação comercial de uma guerra ilusória contra o crime. Do limão da complexidade de uma segurança pública e igualitária à limonada das oportunidades de fechar negócios particulares e desiguais da proteção que fidelizam a coletividade e a tornam refém das ameaças constantes e difusas, as quais incensam mais ainda a mística da solução apolítica, onde tudo será resolvido quando houver mais: “mais preparo, mais inteligência e mais tecnologia”. Desfoca-se a institucionalidade e culpam-se os subordinados e seus acessórios para dispersar responsabilidades políticas e barganhar mais poder coercitivo, mais recursos.

Na posologia dessa cloroquina propositiva não importa qual o problema concreto de (in)segurança pública e/ou de atuação policial em âmbito local, regional ou federal. Importam menos a gravidade, as consequências para a população e seus impactos no regime democrático. Nos palcos das disputas histriônicas de narrativas por likes, engajamentos eleitorais e algum tipo de monetização, assiste-se ao mesmo espetáculo populista do coelho tirado da cartola por políticos e supostos especialistas ávidos por holofotes. Ecos vibram pelas redes sociais físicas e virtuais: faltam “preparo, inteligência e tecnologia”. Amplia-se a seita da “fé cega e facas amoladas” desgovernadas com o acréscimo rentável de mais seguidores até a próxima desgraça que irá demandar outra pregação do “mais do mesmo” sobre como resolver de vez o problema da segurança e eliminar o pecado da humanidade. Mas o que faz esse recheio podre envolto num papel de bala vistoso ser tão atraente? A mágica da despolitização da política, as manobras de ocultação da responsabilização política sob as vestes calculistas da culpa atribuída a algum subalterno ou bola da vez. Vejamos cada ingrediente por vez.

A retórica do preparo quer fazer crer que se trata sobretudo de uma questão pessoal do policial que, sendo uma “mão de obra limitada” e/ou um sujeito mal-intencionado de origem, não aprendeu ou não quis fazer direito o que foi ordenado por um sujeito indeterminado da oração de comando sob o qual não se teria como imputar responsabilidade administrativa. Esta manobra capacitista coloca toda a fatura na conta de um individuo avulso e desprovido dos mitos e ritos corporativos que o moldam. Oculta-se a instituição policial, sua política de policiamento e, por derivação, sua política formativa que atente às suas prioridades também políticas. Nessa retórica engana-bobo, quem dá os meios e os modos do agir esconde seus fins políticos. E isso para impossibilitar responsabilização, accountability e transparência da cadeia de comando e o seu processo decisório: do topo (governante) até a base (policial de rua). Essa é a governança concreta de polícia.  Note-se que currículos oficial e oficioso são traduções instrumentais da política corporativa de uma agência de larga escala como a polícia.  Criar uma oposição rígida entre o formal (corporação) e informal (integrantes) como justificativa para a necessidade de preparo diante de um “erro individual” é reduzir uma organização complexa e seus processos de aprendizagem às suas regras, prédios e equipamentos.

Ressalte-se o óbvio: o policial deve ser policial. A formação corporativa é, por natureza, distinta da formação profissional universal, posto que esta capacita um policial a atuar dentro de uma polícia concreta, e não a ser um sociólogo cuja virtude é desfilar seu “sociologuês” até como influenciador digital ou escritor de novela. É a política de um certo governo que define a política de formação policial. Esta delimita as competências desejadas em seus distintos perfis profissionais e as capacidades esperadas para se fazer uso concreto do que foi aprendido em um ciclo coletivo e contínuo de preparo. Resta dizer que a retórica da falta de preparo e a despolitização da responsabilização institucional é uma versão repaginada da caduca teoria das maçãs podres, que esteriliza as relações de poder para tornar invisível o cesto organizacional que faz as maçãs apodrecerem.

Já a retórica da inteligência faz uso de um truque bem engenhoso. Dizer que a questão está na inteligência é uma outra tática acionada para esvaziar a responsabilização do governante, do chefe da polícia ou de algum dirigente frente a algo que deu errado, mas que não se quer buscar autorias para o alto. Das cinco modalidades clássicas de emprego policial (emergência, operações especiais, patrulha, investigação e inteligência), a inteligência é a menos visível e palpável para a população e, por isso, mais passível de ilusionismos. Para o cidadão comum, que não tem como observar a inteligência em atuação, tudo pode mesmo ser “um problema da intel”. Falar que a inteligência alertou ou não é “dar uma satisfação à sociedade”, construindo um culpado genérico sob um crivo cientificista, sem precisar seguir à procura de autoria. A tal inteligência pode estar em todo o lugar e em lugar nenhum.  Há uma ambiência de sigilo e de suspeição ampliada na “inteligência” que reveste o real sistema investigativo policial no Brasil, corolário das práticas de exceção, da arapongagem viva no imaginário sociopolítico.  Esta se atualiza como uma excepcionalidade necessária que se legitima como refratária ao controle social, reservada a poucos para servir como mercadoria política e indevassável às exigências democráticas.  Isso permite pôr na sua conta o malfeito, o bem-feito e o desfeito: “foi a inteligência que avisou ou deixou de avisar”.

A inteligência vira, quando conveniente, um poder autônomo que pode “fazer o certo pelo errado”, pois os fins podem justificar os meios invasivos empregados. De forma oportunista apresenta-se mais como um saber iniciático do que como uma gestão da produção do conhecimento e da informação voltados para tomada de decisões estratégicas de quem está em posição de mando.  Operada como uma central de fofoca e rumores, de autorias coletivas e difusas, a tal inteligência se torna um vigoroso álibi ou uma oportuna Geni em quem se podem jogar pedras sem correr o risco de acertar a cabeça do governante.

Por fim, a retórica da tecnologia tem um alto rendimento para esvaziar a responsabilização política além de soar como um rumo modernizante. A tecnologia é narrada como um ente neutro desprovido de razão e afeto e que, por isso, torna-se útil como um depósito de culpas pelas coisas que não dão certo. Pode-se dizer que a culpa é do algoritmo defeituoso da identificação facial que produz, sem querer, uma filtragem racial e não dos sujeitos que o conceberam, adotaram e manobraram a engenhoca. Também é possível argumentar que a falha observada é apenas um defeito da máquina e não o resultado de seus modos de uso.  É como se por lamarckismo social a ferramenta involuntária tomasse o controle da mão que a segura e do pensamento que guia o seu uso. Oculta-se que além da tecnologia ser produto de escolhas e de relações de poder, ela é um meio a serviço de qualquer fim, a qualquer senhor, a qualquer projeto político. Assim, a retórica da solução tecnológica revela-se como um projeto conservador e incremental de reforma da polícia e da segurança pública no qual trocam-se só os brinquedos sem transformar a visão de mundo e as práticas institucionais de controle social que conformam o decidir e o agir dos policiais.

Uma vez explicitado como a melô do “preparo, da inteligência e da tecnologia” serve como uma síntese bem-acabada da desresponsabilização político-administrativa, isto é, da despolitização das políticas de segurança, cabe ressaltar que a polícia é a política em armas e, que por isso, requer o controle civil do uso potencial e concreto da força coercitiva. Comprometer a produção responsabilização e accountability sabota a governabilidade democrática das espadas que, primeiro leais a si mesmas, quando autonomizadas, se tornam disponíveis às aventuras de líderes corporativistas que, sob os disfarces de um cientificismo de coachs de YouTube, ensejam chantagear governos eleitos, cortar a língua do verbo da política e rasgar a letra da lei. Xô, cloroquina!

 

 

 

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