Política e Polícia

Ciências Policiais, o meio acadêmico e o ambiente policial

As Polícias Militares são particularmente conservadoras; as Ciências Sociais são majoritariamente de esquerda. Infelizmente, nossos posicionamentos ideológicos influenciam tremendamente nossas pesquisas, corrompendo parâmetros epistemológicos

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo.

Esta semana, os grupos e redes sociais, no âmbito das Polícias Militares, difundiram o artigo, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 37, n. 108, de autoria de Renato Sérgio de Lima, Francisco Thiago Rocha Vasconcelos, Fernando Rossetti Pinheiro Marques Vianna e Rafael Alcadipani, intitulado “Saber acadêmico, guerra cultural e a emergência das ciências policiais no Brasil”.

Como há particulares e fraternos amigos em ambos os lados do debate, como o Renato, o Alcadipani e o Azor, vou me conceder o direito de chamá-los pelo primeiro nome ou por aquele que são comumente conhecidos. Francisco e Fernando não os conheço, mas parto do princípio de que são bons profissionais e dignos de confiança.

Pois bem, antes de entrar no cerne do debate, gostaria de externar meus pressupostos. Em primeiro lugar, não há exclusividade do conhecimento e da pesquisa. Nem no meio acadêmico, nem no meio policial. Ao contrário, não é crível que haja barreiras, e a intercambialidade deveria ser o padrão desejado e alcançável. Em segundo lugar, preconceito não deve ter espaço em debates acadêmicos, mas, infelizmente, não raras vezes, tem permeado sutilmente nossos embates. Em terceiro lugar, entendo que o que se chama de “ciências policiais” está englobado no que os pesquisadores anglo-saxões (norte-americanos e ingleses) chamam de Criminology. Mas isto não me dá o direito de impedir, obstar ou me contrapor ao desígnio de parcela da oficialidade de criar um campo de conhecimento próprio para tratar do assunto.

Gostaria, neste artigo, de ser o mais franco possível e de enfrentar alguns problemas que permeiam os debates nos últimos 40 anos.

Em primeiro lugar, há um mal-estar entre as ciências sociais em particular — pois isso não ocorre com o Direito — e as organizações policiais, em especial as Polícias Militares. Não precisa ser nenhum sábio ultra bem preparado para vislumbrar o desconforto. As Polícias Militares são particularmente conservadoras; as Ciências Sociais são majoritariamente de esquerda. Como não estamos tratando de ciências da natureza ou físicas, infelizmente, nossos posicionamentos ideológicos influenciam tremendamente nossas pesquisas, corrompendo parâmetros epistemológicos. Esse mal-estar precisa ser enfrentado, porque uns não deixarão de ser conservadores, tanto quanto outros não se enviesarão para a direita. Separar de forma bastante delimitada o que é o objeto de pesquisa do que são nossas tendências é imperativo da maior importância. Há que se chegar a alguns consensos e respeito recíproco.

Em segundo lugar, é preciso que haja um campo do conhecimento que trate das questões policiais. As relações acadêmicas entre universidades inglesas (particularmente Oxford) e a polícia inglesa (em especial a londrina) são bastante aprofundadas. São concedidas bolsas para integrantes das Polícias cursarem graduação em Criminologia, realizarem mestrados e doutorados, bem como preparados cursos específicos para as características e as peculiaridades policiais. Igualmente, pesquisadores acadêmicos desenvolvem, em unidades de polícia, seus trabalhos de pesquisa. Seria ilusório pensar, conhecendo a natureza humana, que fosse um mundo de flores. Evidente que não é. Mas as relações são respeitosas e esses imensos obstáculos, que vislumbramos no Brasil, superados. Em 2013, procurei o então reitor da USP, professor João Grandino Rodas, para que ele desse início ao processo de criação de um novo curso na USP Leste, o de Criminologia. Eu era diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos. À época, a situação da USP era calamitosa. As conversações não evoluíram, mas meu incômodo permanece até os dias contemporâneos. Policiais precisam ter um curso que trate especificamente de sua profissão, como todas as outras categorias profissionais.

Em tese, não precisamos ser de direita ou de esquerda para frequentarmos qualquer curso ou desenvolvermos qualquer pesquisa. Tivemos um problema de saúde grave com meu filho mais velho há vinte anos. Depois de passarmos por diversos médicos, chegamos a um professor e pesquisador acadêmico, à época chefe de um departamento de medicina de importante faculdade de São Paulo. Ele era profundamente conservador. Mas resolveu o problema de meu filho. Mais recentemente, problema de cunho médico também nos acometeu. O médico, também renomado no Brasil e no exterior, por saber que eu era oficial da Polícia Militar, demonstrou seu apreço pelo Bolsonaro, mal imaginando que eu tenho absoluto desprezo por autoritários. Mas ele também encaminhou solução para o sério problema que tínhamos. Separar o objeto de pesquisa de nossas preferências político-ideológicas é trabalho inconcluso para nós.

Em quarto lugar, Renato, Alcadipani, Francisco e Fernando não imaginam a briga que compraram, não apenas com os setores “neoconservadores” e voltados para a “guerra cultural”. Talvez eles desconheçam, mas o mesmo mal-estar que tenho em relação à formação e à necessidade de aperfeiçoamento da profissão policial, também é compartilhado por um grupo de oficiais — com os quais trabalhei em órgãos de ensino da Polícia Militar — e que, em hipótese alguma, tinha os desígnios expostos pelos autores. O coronel Luis Eduardo Pesce de Arruda é um deles. Diretor do Centro de Aperfeiçoamento e Estudos Superiores (CAES) da Polícia Militar de São Paulo, entre 2008 e 2011, ele lutou muito para uma maior intercambialidade entre o meio acadêmico (em especial a UNESP) e os órgãos de ensino e pesquisa da Polícia Militar, tanto quanto tornar aqueles oficiais, propensos à pesquisa, a serem protagonistas nessa seara. O projeto de criar as ciências policiais, com as minhas ressalvas expostas acima, é do início do século 21, ou seja, ele perfaz hoje 20 anos. Também o coronel Eduardo Oliveira Fernandes, com ótima formação profissional e intelectual, deu importante avanço no CAES, inclusive de ordem legislativa.

Em quinto lugar, os embates ideológicos e políticos transpassam para as pesquisas acadêmicas e para a pessoas de estudantes e pesquisadores. A homenagem que fiz ao professor Dallari, na edição nº 133, de 13 de abril de 2022, deste Fonte Segura, demonstra minha gratidão a ele e o exemplo que ele exerceu em minha vida, pessoal, profissional e acadêmica. Como ele, tive o prazer de ser aluno de pessoas como Maria Hermínia Tavares de Almeida (DPC), Fernando Limongi (DPC), Odete Medauar (FADUSP) e meu sempre orientador Gildo Marçal Brandão (DPC), falecido há mais de década. Mas sou obrigado a reconhecer que também sofri preconceitos em ambas as faculdades, inclusive de professora do mesmo departamento de Dallari, lá nos longínquos anos 80.

Por fim, a questão do militarismo da polícia ainda é nevrálgica no debate atual. Só que pessimamente enfrentada no meio acadêmico. Ela se torna política — sem problema nenhum, numa democracia —, mas não pode resvalar para a pesquisa acadêmica. Não se vê, no entanto, a mesma ênfase na questão do bacharelismo. Fosse eu de esquerda radical, diria que há uma evidente tendenciosidade dos autores. Como bacharéis, até os anos 80 e 90, eram oriundos de estratos mais privilegiados da sociedade, os delegados provinham, em grandes parcelas, da classe B. Evidentemente, esse quadro se alterou nas últimas décadas. Em contraposição, como nós, policiais militares, éramos e somos, em grande medida, oriundos das classes D e E, resvalando na C, os autores se esmerariam em criticar o militarismo porque seu foco são os integrantes, social e economicamente, mais marginalizados da sociedade. Sei que esta não é sua posição, mas uma leitura de esquerda vale para ambos os lados.

Igualmente, como pesquisadores de Ciências Sociais se enquadram, majoritariamente, no segmento da esquerda do espectro ideológico, suas opiniões, expressas em jornais e revistas, nas últimas quatro décadas, são pela extinção das Polícias Militares. Imaginem se, a todo o tempo, professores de prestigiosas universidades brasileiras prescrevessem a extinção dos departamentos de Sociologia do País. E dissessem que os cursos de Direito é que seriam, em última instância, os únicos autorizados a falar de sociedade. O falecido professor e desembargador Marcelo Fortes Barbosa (FADUSP) passou seus dois anos de curso de Direito Penal afirmando que Sociologia não era ciência.

Venhamos e convenhamos: não são situações confortáveis. Até porque desafio algum pesquisador — em que pese eu estar voltando, depois de longos oito anos ocupando funções de caráter executivo, a ler e pesquisar temas correlatos — a me demonstrar a incompatibilidade entre polícias militarizadas e democracia. Ou a contrapor o fato de dois terços da população europeia serem policiadas por polícias de caráter militarizado. Ou que a produção de indicadores operacionais — prisões em flagrante, apreensão de drogas e de armas —, de forma absolutamente majoritária, é realizada pela Polícia Militar.

Renato, Francisco, Fernando e Alcadipani parecem ter, em alguns momentos do artigo, escorregado nesse viés antimilitarista. “Assim, desenvolve-se a concorrência entre três propostas principais em torno da existência ou não das ciências policiais e da hegemonia e da autoridade da ciência e do ensino sobre segurança pública. A primeira, centrada na Polícia Federal, promove um modelo de profissional qualificado cientificamente e não militarista, representado na Revista Brasileira de Ciências Policiais” (p. 7). A afirmação resvala muito proximamente no preconceito, como se segmentos militares não pudessem desenvolver pesquisas científicas e como se o militarismo fosse um problema per se, ontológico.

Por fim, também tenho que reconhecer que meu amigo Azor exagerou na tinta. Confesso meu completo desconhecimento do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. O tempo não me permitiu avançar nas leituras ofertadas. Mas reconheço que afirmar que as “pesquisas de segurança pública carecem de uma abordagem científica” não é o mais adequado. Igualmente, afirmar que nessa “realidade social a academia é tocada por uma demanda e dela despertam pesquisadores e “especialistas” nem sempre dotados   de   expertise   científica para uma imersão num tema tão complexo” [sic] (Azor Lopes da Silva Junior, “O Instituto Brasileiro de Segurança Pública: suas origens, perspectivas, missão e aspirações.” Revista do Instituto Brasileiro de Segurança Pública. 1., 1, p. 10, , acesso em 25.04.22) desconhece a realidade fática de ótimas pesquisas no campo acadêmico.

Ao ver o presente debate, enfatizo a grave crise por que passa o país e a nossa sociedade. Não há problema algum em haver um centro de pesquisa capitaneado por integrantes das Polícias Militares. Igualmente, não há óbice de qualquer ordem, epistemológica inclusive, em haver civis, integrantes de centros de pesquisa independentes ou ligados a universidades, trabalhando com a presente temática. O que não pode haver é o debate puramente acadêmico ser permeado pelo “nós e eles”. Precisamos superar urgentemente essas barreiras.

Despedida. Gostaria de enaltecer o papel que o coronel Fernando Alencar, que agora passa o Comando da Polícia Militar de São Paulo, teve na instituição das câmeras de uso individual dos policiais militares. Essa medida mudará o curso da história da segurança pública no Brasil. Desejo sorte ao coronel Ronaldo Vieira. Ambos foram meus alunos em diferentes cursos da Instituição. Sem falsa modéstia, orgulho-me por nunca termos tido um único Comandante Geral sobre o qual tenha pairado qualquer indício de dúvida de ordem ética ou de ofensa aos direitos humanos.

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