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Chacinas policiais e o cerco à democracia

O uso não regulado da força oficial propicia a obtenção de vantagens privadas, como as práticas de extorsão, e da negociação de maior ou menor repressão. A tentativa de salvaguardar esse recurso parece ser o motivo que explica a resistência das forças policiais às tentativas de controle democrático da sua atividade

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Daniel Hirata

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Diogo Lyra

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Carolina Grillo

Coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Renato Dirk

Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

“O absoluto monopólio do poder e da autoridade por parte do Líder é mais evidente no seu relacionamento com o chefe de polícia que, num país totalitário, ocupa o cargo público mais poderoso”

Hanna Arendt, As origens do totalitarismo

Uma citação atribuída a Albert Einstein define a insanidade como o ato de se fazer uma mesma coisa repetidamente, esperando, no entanto, resultados diferentes. Sob essa perspectiva, as ações na área de segurança pública no Rio de Janeiro, ao longo de sua história, se encaixam perfeitamente nesse significado. Com raros momentos de exceção, em três décadas e meia de democracia, as autoridades políticas e policiais do estado se entregaram de corpo e alma ao populismo penal, anunciando de pleito em pleito novas medidas requentadas – desde o Estado Novo pelo menos – de tolerância zero para com os “malandros”, os “marginais”, os “bandidos”. Sob a égide do enfrentamento puro e simples da criminalidade, que procura “vingar” a sociedade dos seus “algozes”, o Rio de Janeiro nunca encontrou a paz prometida pelos políticos que elegeu, colhendo sempre mais violência.

Nas democracias modernas, o uso da força pelo Estado, em especial a força letal, precisa ser publicamente pactuado, legalmente limitado e submetido ao controle democrático das instituições públicas e da sociedade civil. A disposição absoluta sobre a vida e morte dos indivíduos, incluindo aí criminosos, não pode ser considerada como política pública, a não ser quando historicamente enquadrada em momentos autoritários. Contudo, desde a redemocratização, temos testemunhado no Rio de Janeiro, com raros intervalos, esse tipo de atuação. As chacinas policiais que marcam nossa história de ponta a ponta são uma das expressões mais evidentes do cerco à democracia empreendido pela polícia, com a chancela de uma complexa rede de atores institucionais que envolve chefes do executivo, legisladores, juízes e promotores públicos.

As chacinas policiais devem ser entendidas como um fenômeno de alta concentração de mortes em eventos regulares específicos, ou seja, as chacinas ocorrem em uma pequena parte do imenso volume de operações policiais realizadas todos os dias no Rio de Janeiro, mas têm um peso muito importante na letalidade das operações policiais. Para se ter uma dimensão, no período entre 2007-2021, foram realizadas 17.929 operações policiais no Rio de Janeiro. Deste total, 593 operações policiais resultaram em chacinas, totalizando 2374 mortos. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro as chacinas ocorreram em 3,3% das operações policiais, mas são responsáveis por 41,1% das mortes em operações policiais e 17% do total das mortes por intervenção de agentes de estado.

De janeiro a abril deste ano, já registramos 16 chacinas com 85 mortos. Com indignação, mas sem surpresa, nos defrontamos nesta última terça-feira, dia 24 de maio, com 26 pessoas mortas em uma ação conjunta da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, realizada nas favelas da Vila Cruzeiro e Chatuba, no bairro da Penha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Essa chacina policial foi a segunda mais letal da história do estado, atrás apenas da chacina do Jacarezinho, que resultou em 28 mortes e completou seu primeiro aniversário apenas há 20 dias. Ambas as chacinas policiais ocorreram sob a gestão do atual governador Claudio Castro e, nessas duas ocasiões, representantes da polícia aproveitaram para se manifestar publicamente contra a decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu a realização de operações policiais em favelas a situações absolutamente excepcionais.

Não cabe a nós, pesquisadores, determinar se houve confronto ou execuções sumárias. É, contudo, nosso papel alertar que a ênfase das políticas de segurança pública fluminenses no confronto armado e no extermínio de suspeitos, acarreta custos altíssimos à sociedade e não contribui para a diminuição da ocorrência de crimes. Além dos números inaceitáveis de vítimas fatais, todos os dias milhares de pessoas são impedidas de comparecer ao trabalho e escolas, creches e serviços de saúde deixam de funcionar nas áreas onde a polícia realiza operações. Enquanto isso, os grupos criminais armados continuam controlando vastos territórios urbanos sob a ponta de pistolas e fuzis comercializados por quadrilhas altamente especializadas e entranhadas em órgão nacionais de segurança e defesa e vendendo drogas que atravessam milhares de quilômetros do território nacional antes de chegarem às favelas cariocas. Já os traficantes ditos “neutralizados”, na base ou no topo da hierarquia criminal, são prontamente substituídos. Acreditar que chacinas são um meio eficiente de combate a uma facção de atuação nacional é tão tolo quanto perverso, mas historicamente foi sempre uma estratégia profícua em alavancar dividendos eleitorais.

Temos demonstrado por meio de uma série de relatórios a ineficiência das operações e que a prerrogativa policial de condução de incursões armada em favelas a salvo de controles democráticos colabora para a corrupção do aparato policial e o favorecimento de alguns grupos armados em detrimento de outros. O uso não regulado da força oficial propicia a apropriação desse recurso à violência para a obtenção de vantagens privadas, como as práticas de extorsão, da negociação da maior ou menor repressão. Parece ser antes para salvaguardar esse recurso passível de mercantilização do que para combater o crime propriamente dito que as forças policiais resistem com tanta determinação às tentativas de controle democrático da sua atividade.

A solução para resolver esta intricada equação já está posta na mesa faz muito tempo e adveio antes da mobilização da sociedade civil que de políticas estatais. Não são necessárias operações espetaculares, ocupações militarizadas ou soluções mágicas para o problema da letalidade policial. Com o conhecimento acumulado socialmente nas últimas décadas é possível reduzir drasticamente as mortes decorrentes de intervenção de agentes de estado no curto prazo. Mas é necessário comprometimento e não negacionismo sobre a questão.

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